Um “regresso ao século XIX” e um “ataque ideológico às mulheres e aos jovens”. É assim que Ana Mendes Godinho, ex-ministra do Trabalho, classifica o anteprojeto da reforma laboral desenhado pela coligação PSD/CDS que sustenta o Governo. “Percorremos um caminho de evolução social, reconhecendo que a lei do trabalho tem de promover equilíbrios e esta proposta vem regressar ao século XIX com o primado de quem tem o poder na limitação das liberdades reforçado”, diz ao Jornal Económico (JE) a candidata à Câmara de Sintra.
Ana Mendes Godinho avisa que, com o conjunto de propostas que a Aliança Democrática (AD) quer levar a cabo, agrava a “precarização” dos jovens, “voltando à Troika e à lógica de que ser jovem é razão para ser contratado como precário”. Ao mesmo tempo, “aumenta-se o prazo da precariedade de um contrato [a prazo] passando de dois para três anos, eternizando-a. Sabendo como isto é crítico, nomeadamente para um jovem que se quer autonomizar, quer contrair um empréstimo para a compra de uma casa. Ter um contrato de trabalho precário é uma prisão e uma limitação à liberdade”, frisa a ex-governante.
“A minha pergunta é: porquê? Numa altura em que temos taxas de emprego recorde e desemprego em mínimos, para quê? Quem é que esta agenda serve? É evidente quem é que isto serve … É o reagendar um ataque aos jovens e às mulheres que é inadmissível no século em que vivemos”, acrescenta.
Ana Mendes Godinho critica ainda outras propostas do anteprojeto por serem um “retrocesso”, designadamente o fim da proibição do recurso ao outsourcing durante um ano após um despedimento coletivo ou despedimentos por extinção do posto de trabalho (uma limitação decidida em 2023 na Agenda do Trabalho Digno).
Outro dos recuos apontados pela antiga governante – que foi ministra do Trabalho, da Solidariedade e Segurança Social em dois governos de António Costa (2019 e 2022) – é o fim da criminalização do trabalho não declarado, o que inclui o trabalho doméstico, uma medida que tinha sido tomada durante o executivo de maioria absoluta do PS. “Foi uma evolução histórica que fizemos no país e volta-se tudo atrás”, lamenta.
No que toca aos direitos das mulheres, a ex-ministra sublinha que o retrocesso não se resume à questão das mudanças nas regras da amamentação. Inclui também a revogação do luto gestacional e mexidas na flexibilidade horária e nas licenças. “Demos um passo gigante em relação às licenças para promover maior conciliação entre a vida profissional e familiar, e dois anos passados há um retrocesso? Retrocedemos 200 anos na legislação laboral?”, questiona-se. Onde Ana Mendes Godinho também vê passos atrás é na questão dos trabalhadores das plataformas digitais com a proposta da AD a revogar várias alinhas do 12.º artigo do Código do Trabalho.
Ao analisar o conjunto das propostas, Ana Mendes Godinho conclui que, ao invés de assegurar “equilíbrios nas relações entre as empresas e os trabalhadores”, a proposta da AD, se viabilizada, “vai desequilibrar completamente esta relação e colocar todo o poder de decisão numa das partes”.
“Os princípios que este anteprojeto segue são exatamente de retrocesso na valorização dos trabalhadores, retrocesso no princípio que, cada vez mais, nos deve orientar a todos como sociedade, que é valorizar o trabalho como um factor decisivo do nosso desenvolvimento (…) Toda esta agenda tem por trás os princípios da precarização e da fragilização do poder dos jovens e das mulheres”, enfatiza nas declarações ao JE.
A socialista recorda as ‘conquistas’ no emprego alcançadas depois da crise covid-19 para as comparar com a “perda de emprego” que se verificou nos anos da Troika (2012-2014), numa altura em que PSD/CDS governavam o país, com Pedro Passos Coelho como primeiro-ministro.
“Conseguimos sair da pandemia com uma taxa de desemprego mais baixa do que tínhamos antes da pandemia, mostrando que não é com os dogmas que nortearam a Troika que o país cresce”, lembra a socialista. Nessa altura de intervenção externa, houve “uma perda de emprego brutal porque não houve a capacidade de perceber que a proteção do emprego era um bem essencial da sociedade e agora retrocede-se em tudo para fragilizar a posição dos trabalhadores, das mulheres e dos jovens. É a antítese daquilo que deve ser o futuro do trabalho”, defende.
À pergunta sobre se receia que a revisão das leis laborais acabe por ser negociada com o Chega, a antiga ministra responde com um desejo: “Espero que o bom senso e a voz das mulheres e dos jovens se sobreponham a uma agenda anti-equilíbrio nas relações laborais e que o bom senso dite que a valorização dos trabalhadores esteja acima de interesses particulares de alguns”, diz, apelando a que “não possa haver um regresso ao século XIX ditado pelos interesses particulares de alguns.” “Mulheres e jovens, unamo-nos contra este retrocesso civilizacional”, pede, por fim.
O Governo aprovou no passado dia 24 de julho o anteprojeto da reforma da legislação laboral, um documento que apelidou de “Trabalho XX”, explicando a ministra do Trabalho, Maria do Rosário Palma Ramalho que o grande mote é “flexibilizar para valorizar e crescer”. Segundo a responsável pela tutela, o anteprojeto que apresentou aos parceiros sociais “flexibiliza regimes laborais que são muito rígidos por forma a aumentar a competitividade da economia e a promover a produtividade das empresas”, “valoriza os trabalhadores através do mérito” “estimula o emprego, em especial o jovem, e a capacidade de reter talento” e pretende “dinamizar fortemente a negociação coletiva e a contratação coletiva”.
Mas algumas das propostas mereceram desde logo cartão vermelho da direita à esquerda. No topo das mais polémicas estão as medidas relacionadas com direitos das mulheres com filhos. O Governo quer introduzir o limite de dois anos na dispensa para amamentação (atualmente, essa dispensa (duas horas diárias) é possível durante o tempo que durar a amamentação).
Ao mesmo tempo, passará a ser exigido um atestado que comprove que a mãe está a amamentar logo que regressa ao trabalho, ou seja, antes dos 12 meses da criança, renovado a cada seis meses. A lei atual define que esse atestado apenas é exigido após a criança completar o primeiro ano de vida.
A alegação da ministra de que há casos de mulheres a usar a amamentação até as crianças irem para a primária, para poderem ter horário reduzido, tem marcado o debate nos últimos dias, com a oposição a condenar a suspeição suscitada por Maria do Rosário Palma Ramalho, sem dados que suportassem a afirmação.
Ministério quer “credibilização do sistema”
Questionado pelo JE sobre que entidades ouviu para desenhar estas propostas e quantos casos de mulheres a “abusar” da lei há, o Ministério do Trabalho quis esclarecer “que a dispensa é concedida e suportada diretamente pelas entidades empregadoras”.
Acrescentou que o Governo se decidiu “por um anteprojeto porque privilegia o diálogo social com os Parceiros Sociais na CPCS, onde já apresentou, imediatamente após RCM [Reunião de Conselho de Ministros], as respetivas propostas de alteração”.
Quanto às medidas defendidas no anteprojeto, que está publicado no site do Governo para consulta da sociedade civil, a tutela defende que o Governo “mantém a dispensa para amamentação garantida até aos dois anos da criança, em linha com as recomendações da Organização Mundial de Saúde”.
Defende, ao mesmo tempo, que o documento “prioriza o reforço da partilha da licença parental, com medidas concretas como o pagamento a 100% da licença parental partilhada durante 180 dias e o aumento da presença do pai após o parto, promovendo e reforçando a conciliação da atividade profissional com a vida familiar”.
“Esse reforço exige um regime claro e equilibrado, que garanta o exercício legítimo dos direitos, permitindo que a sociedade no seu todo beneficie da credibilização do sistema”, lê-se na resposta enviada ao JE, que remata assinalando que a missão da reforma que quer levar a cabo passa por “criar soluções justas, credíveis e aplicáveis, que valorizem os trabalhadores, apoiem as famílias e garantam às empresas regras estáveis e seguras, beneficiando toda a sociedade”.
António Leitão Amaro, ministro da Presidência, questionado sobre o tema na conferência de imprensa que se seguiu ao Conselho de Ministros da última quinta-feira, fugiu ao tema da amamentação e às polémicas declarações de Palma Ramalho e assegurou que, ao contrário do que tem sido dito pela oposição, a reforma da legislação laboral do Governo é “a favor dos jovens, das mulheres e da família” – uma intenção que, vincou, é “inequívoca”. Seja como for, disse também: “sendo um anteprojeto (…) O que interessa é como acaba, não é como começa”.
Em termos de aritmética parlamentar, a AD está dependente de dois partidos da oposição, precisando de um deles para fazer avançar as suas propostas. PS ou Chega. Nem um nem outro acompanham as medidas relacionadas com a amamentação e fim do luto gestacional, mas enquanto os socialistas lamentam o retrocesso e “a ofensiva em larga escala”, André Ventura já marcou terreno, propondo ao PSD uma delegação conjunta para criarem uma proposta de revisão laboral, sem que seja necessário o PS, tal como aconteceu com a lei dos estrangeiros e IRS.
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