Iñaki Rekarte, um antigo etarra que passou cerca de metade da vida na prisão, deu em Maio de 2015 uma entrevista ao canal de televisão espanhol “La Sexta” onde reiterou o seu arrependimento, reconheceu o dano e o sofrimento causados, pediu perdão às vítimas, descreveu a ETA como uma organização cruel e sanguinária.

Aos olhos de quem não esteja familiarizado com os efeitos do terrorismo basco, a entrevista não oferecia motivos para sobressalto. Porém, as declarações foram recebidas com frémito. A expressão mais visível dessa comoção constou numa carta aberta endereçada ao antigo membro da ETA. A autora, Silvia Goméz Rios, cujos pais foram mortos por Rekarte em 1992, escreveu “serás hoje um ex-etarra, mas para sempre um assassino”. Não esqueceu a situação de desamparo para a qual ela e o irmão foram remetidos. Goméz Rios acrescentou que não deseja mal a Rekarte, mas “tudo era dor e, 23 anos depois, continua a ser dor”. Este caso, um entre muitos, exibiu as marcas profundas de mais de quatro décadas de violência e deixa entrever as consequências sociais e políticas que delas resultaram.

Criada em 1959, a organização Euskadi ta Askatasuna (País Basco e Liberdade), ou ETA, é responsável por mais de 800 homicídios. A estes somam-se órfãos, viúvas e mais de mil feridos, alguns com danos físicos permanentes. Contrariamente à crença de parte da opinião pública portuguesa, a maioria destes crimes aconteceram em plena vigência do regime democrático em Espanha. Segundo um relatório elaborado pela Universidade do País Basco, apenas 5% dos assassinatos foram cometidos durante o Franquismo e os restantes no período entre 1976 e 2010.

De resto, e apesar do Estado democrático ter amnistiado os etarras presos pelo regime de Francisco Franco e de ter permitido ao independentismo basco a participação em eleições livres, é nas fases de transição democrática (1976-1981) e de consolidação da democracia (1982-1994) que se verifica maior incidência de assassinatos.

Se o fim da consolidação democrática assinalou uma redução na frequência de atentados, o período subsequente ficou marcado pela disseminação do terror, uma época conhecida como “socialização do sofrimento”. A partir de 1995, mais do que visar políticos, polícias, magistrados e outros representantes do Estado, a ETA levou a sua causa a outros os sectores da sociedade, declarando guerra a jornalistas, académicos, empresários e a todos os que discordassem dos métodos e causas da organização. No entanto, o terrorismo foi apenas um dos eixos da estratégia.

Terrorismo, partidos e associações

A independência do País Basco, étnica e culturalmente homogéneo, e a edificação de uma sociedade socialista foram os desígnios motrizes da “luta armada”. Porque os fins precisam de meios, e os meios de uma estratégia, a ETA aprovou na sua IV Assembleia, realizada em 1965, a célebre “acção-reacção-acção”: a estratégia de provocar, por via de atentados, uma reacção desproporcional por parte das autoridades e, assim, capitalizar a narrativa de vitimização para obter apoio popular. Antes da transição para a democracia, mas também com alguns episódios posteriores, o Estado espanhol encarregou-se de fazê-la funcionar.

À utilização política da violência a ETA acrescentou dois componentes, os partidos e as organizações ditas civis, que iam de associações culturais e estudantis a sindicatos. Juntos formaram o Movimento de Libertação Nacional Basco, filiado no que se convencionou designar por esquerda abertzale (patriótica), da qual a ETA foi vanguarda armada.  Mediante um vasto repertório de acções públicas, de pinturas murais a protestos com cadência semanal, o abertzalismo ocupou a rua basca. A vida social foi condicionada por manifestações pró-independência, por cerimónias de glorificação dos presos etarras, pela exaltação de efemérides nacionalistas, pela kalle borroka (vandalismo urbano e violência de baixa intensidade).

Quem não participasse – por acção ou mera anuência – corria o risco de ser visto como traidor. E a violência da ETA deixava claro qual o preço de estar em conluio com o inimigo. Esta ritualização do nacionalismo radical em público criou a ilusão de que só existia uma forma de ser basco, o que, citando Amartya Sen em “Identidade e Violência” (2006), obrigou as pessoas ao “culto de um sentimento de inevitabilidade em relação a uma identidade alegadamente única”. Acrescentou Sen que “o sentimento de identidade, ao mesmo tempo que abraça calorosamente um conjunto de pessoas, é responsável pela exclusão firme e determinada de outras”. Quanto mais beligerante é a identidade, mais acintosa é a exclusão.

Fernando Savater falou dessa exclusão no ensaio que abre o livro “Contra las Patrias”, de 1984. Retratou o País Basco como uma região onde existe medo de “dizer claramente o que se pensa, quando de verdade se pensa”. Não se tratava do “simples medo” de levar um tiro, mas sim do temor a que “nos façam o vazio”: o medo de perder amigos, o medo de que se nos fechem as páginas dos jornais, o medo de ser considerado tóxico. Em suma, o medo a ser proscrito por não alinhar no pensamento único.

De facto, a cultura do medo, a “espiral de silêncio”, instalou-se no País Basco, atrofiando o espaço público de tal forma que nem os funerais das vítimas da ETA motivaram o repúdio popular à violência. Segundo o já mencionado relatório da Universidade do País Basco, em 1979 a ETA e grupos afins perpetraram 59 atentados, dos quais resultaram 80 mortos. Destes, apenas 24% tiveram resposta na forma de manifestações públicas de apoio às vítimas, ou de condenação da violência. No ano de 1984 a proporção desce para 18%. Porque o estatuto de “inimigo do povo basco” não se extinguia com a morte, casos houve em que as campas das vítimas foram vandalizadas com a pintura de símbolos alusivos à ETA e se fizeram ameaças aos familiares do morto.

Em 1997, o sequestro e assassinato de Miguel Ángel Blanco, um jovem vereador do Partido Popular, gerou uma mobilização popular inaudita que desafiou a omnipresença do ideário nacionalista radical e inverteu um pouco a tendência de hegemonia abertzale, mas não terminou com o ambiente de acosso.

A historiadora Edurne Portela resumiu os efeitos deste sistema de opressão quando escreveu que “o medo elimina a empatia” e, por outro lado, “fomenta o rancor porque a vítima próxima, pela sua proximidade, pode arrastar-nos para a sua categoria, pelo que é imprescindível afastá-la física ou emocionalmente”. Por outras palavras, aqueles que estavam marcados pela ETA e os familiares dos assassinados constituíam um perigo para quem os rodeava. Muitos foram, por isso, votados ao isolamento. No ensaioEl eco de los disparos”, de 2016, Portela defendeu ainda que um dos efeitos mais nefastos do terrorismo etarra foi a normalização da violência, isto é, a assunção de que era normal que algumas pessoas, pelos cargos políticos que exerciam, pelas suas actividades profissionais, pelas suas opiniões políticas, estivessem marcadas – e fossem assassinadas – pela ETA.

Fernando Savater e Edurne Portela, ambos bascos, de gerações diferentes e através de textos publicados em épocas distintas, mostraram como o terrorismo dilacerou os laços que unem uma sociedade. A recuperação das condições de convivência é um dos desafios mais complexos e prementes para a normalização social, política e até económica da região.

Economia do terror

Os dramas íntimos e as consequências sociais que deles advêm representam o custo mais elevado do terrorismo. São, obviamente, aspectos difíceis de quantificar. Contudo, parte dos efeitos económicos da actividade etarra estão calculados. Entre 1971 e 2001, o montante pago pelo Consórcio de Compensação de Seguros por danos pessoais e materiais provocados pelo terrorismo em Espanha é superior a 161 milhões de euros, com mais de 99% desta verba a ser despendida após a transição para a democracia. Já as indemnizações públicas superam os 395 milhões de euros, um valor que poderá aumentar uma vez que há ainda vítimas por indemnizar.

A estes valores há que somar outros, nomeadamente os custos resultantes da deslocalização e dos ataques a empresas. Aliás, o meio empresarial foi especialmente visado pela ETA. De acordo com números da Guardia Civil, entre 1968 e 2001 a organização terrorista recolheu informações sobre 1.843 empresários, com o intuito de extorsão ou sequestro, o que compara com 899 profissionais do Poder Judicial, 766 polícias, ou 733 militares da Guardia Civil.

No que respeita ao orçamento da ETA, o “imposto revolucionário”, uma prática de extorsão habitual sobre empresários, terá rendido à organização 21 milhões de euros. Os sequestros renderam 106 milhões de euros e os assaltos 19 milhões de euros. A natureza clandestina da ETA, aliada a aspectos como a indisponibilidade dos extorquidos para admitir o pagamento do “imposto”, faz com que seja difícil aferir estes números com rigor. Estes valores são, portanto, conservadores.

O livro “La bolsa y la vida: La extorción y la violencia de ETA contra el mundo empresarial” (2018), estima que o custo económico directo do terrorismo etarra ascenderá a 25 mil milhões de euros, sensivelmente 18% do PIB do País Basco. Os efeitos do terrorismo na economia como um todo, mas também em sectores e empresas específicas, tiveram consequências na competitividade do território. O fim da ETA constitui uma oportunidade para recuperar o tempo perdido.

Memento mori

O fim da ETA deve-se à conjugação de quatro factores. Primeiro, a cooperação entre Espanha e França pôs fim ao santuário da ETA no País Basco francês, região usada como refúgio, mas também como importante centro logístico e operacional. Segundo, o recurso a procedimentos democráticos. No passado, o uso de métodos ilegais e ilegítimos por parte do Estado foram contraproducentes, pois validaram a narrativa de vitimização etarra, aumentando o apoio popular à organização. A aplicação da lei democrática e a união dos partidos políticos em pactos antiterrorismo de regime desferiram sérios golpes na ETA e evidenciaram a debilidade dos argumentos políticos aduzidos para alimentar o terror. Terceiro, a mudança geracional na cúpula etarra. Fruto da pressão policial e judicial, parte importante dos etarras com experiência de violência armada e com preparação política acabaram presos. No ano 2000, a ETA contava com cerca de 1.000 operacionais; seis anos depois este número desceu para aproximadamente 50. Os terroristas experimentados foram então substituídos por gerações mais novas, impreparadas, que cometeram erros que alienaram parte da base de apoio da organização. Quarto, e como resultado dos factores agora mencionados, muitos partidos da esquerda abertzale distanciaram-se da ETA e condenaram a via armada.

Uma vez que a derrota operacional da ETA é insofismável, a organização luta agora por controlar o relato do passado e, por essa via, definir o futuro político do País Basco. Assim, o terrorismo é enquadrado no âmbito de uma “guerra” provocada pela intransigência dos sucessivos governos em Madrid e as vítimas mortais, sobretudo as intencionais, são vistas como “necessidades de todo o tipo de luta armada”. Para a ETA, o ónus do dano e sofrimento causados repartem-se por Madrid e pelas inevitabilidades de um “conflito” armado. Naturalmente, as vítimas, o Governo, e a imensa maioria dos partidos nacionais rejeitam a premissa e mostram-se indisponíveis para oferecer a leniência política e jurídica exigida pela ETA.

É deste confronto entre relatos – guerra versus terrorismo, baixas versus vítimas – que depende o futuro político e social do País Basco. Os factos evidenciam que se tratou de terrorismo e, como tal, as vítimas e o Estado têm o direito, e a necessidade, de justiça. Indultar um passado de violência dificilmente criará alicerces sólidos para um futuro político salubre. Porém, importa não confundir justiça com revanchismo, sob pena de se acentuarem os abismos sociais existentes e de se incentivar um regresso à violência. A ETA terá desaparecido, mas o ideário radical perdura.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.