Inicia-se o ano de 2020 e todos/as trocam os mais sinceros votos de um bom ano novo. No campo da Justiça, fazem-no sem terem conseguido compreender sequer o verdadeiro alcance dos problemas que trazemos de 2019 e de um longo rol de anos que o antecederam, mas dizem que todos os filmes sobre catástrofes começam com um cientista ignorado.

Para a Advocacia estes problemas surgem identificados, por alguns de nós, que há muito os vamos veiculando à Classe.

Em 2019, ao percorrer todo o Norte de Portugal com uma mensagem muito clara, percebi bem como se deve sentir o tal cientista ignorado de todos os filmes sobre hecatombes. Por força da falta das tais soluções concretas e concretizadas, conjugadamente com a falta de um hábito democrático de prestação de contas, ano após ano, os problemas subsistem por resolver e o recurso à demagogia, ao populismo e à desinformação vai sendo a única tábua de salvação daqueles que, tirando proveito da situação em que se encontra a Classe, e para a  qual muitos deles contribuíram, vão varrendo para debaixo do tapete verdades inconvenientes, para tornar os seus discursos, que são vazios e panfletários, mais atractivos.

E, por isso, os discursos de abertura dos Ano Judicial são, de facto, inúteis. Tornando o momento numa feira de vaidades, pejado de desabafos de divã de psicanálise, sem interesse genuíno.

Marcelo Rebelo de Sousa, arguto, soube perceber o momento que a Ordem dos Advogados atravessa, uma instituição com uma profunda crise de liderança, para transformar um Bastonário eleito, não empossado, num Bastonário a praticar actos em nome da Classe.

Parece um filme de ficção, mas não é! Alguém que ainda não nos representa vai discursar como se nos representasse. O Estatuto da Ordem dos Advogados foi rasgado e com este acto também o pacto que deverá existir entre representantes e representados.

Teremos então, o ainda Presidente do Conselho Superior a discursar na Abertura do Ano Judicial, como se Bastonário fora, quando não devia ignorar que não pode cumular o exercício de funções jurisdicionais com executivas, porque o Estatuto que ainda vigia, ao mais alto nível, lhe veda tal. Marcelo sabe, mas é pragmático. Marcelo sabe bem que os discursos de Abertura do Ano Judicial são verdadeiros verbos de encher, um rol de lamentos, sem consequência, efectuados por quem não sabe, ou não quer saber, quais as soluções para os problemas que, de forma palavrosa, naquele dia e naquele local, faz desfilar. Percebe com acertada clareza que a disputa irresponsável de protagonismo e a manipulação das vaidades pessoais lhe dá poder e desta vez valeu-lhe a possibilidade de interferir na vida interna da Ordem dos Advogados.

Bastonário eleito e Bastonário cessante permitiram e, portanto, serão cúmplices da primeira efectiva intromissão externa numa instituição cujo prestígio, de lastro secular, traficam, sem pudor, à medida da necessidade da satisfação dos seus interesses pessoais.

O cortejo de palavras alinhadas, meticulosamente, por recurso ao copy paste, torna lugar comum as reivindicações redundantes e infrutíferas, a que, ano após ano, corresponde também uma total ausência de soluções e de propostas concretas e concretizadas. Marcelo sabe que dirão o mesmo e que se traduzirão muito rapidamente nas duas faces da mesma moeda. Uma moeda depreciada e que a arrasta a Advocacia para uma situação insustentável.

Há quantos anos se ouvem lamentos, proferidos daqueles púlpitos, quanto à desigualdade marcadamente acentuada, em benefício do primeiro, entre a representação do Estado pelo Ministério Público e a representação dos cidadãos e das cidadãs por Advogados/as?

Por anos a fio, não há uma Advocacia que ponha cobro à inadmissível estreita convivência entre Magistrados Judiciais e Procuradores do Ministério Público, no exercício de funções, unindo o tratamento de questões que, por força da Lei, exigem e impõem tratamento separado?

Há quantos anos ouvimos lamurias sobre as permanentes e cirúrgicas violações do segredo de justiça, que mais não servem do que induzir a formação de juízos na opinião pública, esvaziando–se, por essa via, uma garantia inalienável num Estado de Direito Democrático saudável, a da presunção da inocência?

Quantas e quantas vezes já ouvimos reivindicar que é necessário e é até urgente restaurar a confiança dos/das cidadãos/ãs na Justiça?

Já se perdeu a conta à vezes que lá foi dito que não pode o sigilo profissional ser quebrado para prosseguir fins últimos de investigação criminal, como no caso claro da constituição como Arguidos, abusiva, de Advogados e Advogadas para legitimar buscas a escritórios e assim se recolher prova, dando machadadas profundas naquilo que tem de continuar a  ser o Alfa e o Ómega da Advocacia: guardar segredo?

E o custo da Justiça: quantas vezes se apelou ao cumprimento efectivo do comando constitucional ínsito no artigo 20.º da CRP para que se garanta o acesso à justiça a todos/as os/as cidadãos/as?

Quem ainda se não lembrou de alertar para a necessidade de combater a corrupção?  E a Desjudicialização?

Quantos discursos de abertura de ano judicial não fazem apelo à necessidade de celeridade na Justiça ou na necessidade de dignificação do Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais?

Quantas vezes já não se acusaram também governos por implementarem medidas que desqualificam a Advocacia portuguesa?

Por anos a fio não se denuncia que o judicial se politizou, com queixumes completamente inconsequentes e meramente panfletários?

Até aqui qualquer um de nós poderia fazer um belo discurso de Abertura do Ano Judicial, em nome do Bastonário da Ordem dos Advogados e Marcelo sabe.

Marcelo sabe que este ano se falará, fatalmente, da liberalização do acto próprio ou da delação premiada. Qualquer um de nós sabe.

Mas o que Marcelo sabe e antecipa é que a Advocacia, por esta altura, nem sequer tem tempo para fazer a triagem e parar para comparar a similitude dos discursos espúrios, num ritual há muito vazio de sentido, e que se transformou num momento de glória pessoal, em que aquele púlpito deixou de servir para uma manifestação de responsabilidade e maturidade institucional, mas tão-só para se retirar dividendos políticos pessoais. É que por esta altura do ano, a Classe, esmagada com sacrifícios injustificados, tenta mesmo sobreviver de lápis e papel na mão, a fazer contas de somar para o pagamento anual das quotas, para economizar algum dinheiro, o seguro de responsabilidade civil profissional, o aumento das contribuições para a  CPAS que se avizinha, entre o mais, e não tem tempo para ouvir Discursos palavrosos, redondos e repetitivos.

Mas Marcelo sabe mais: sabe que quem sobe ao púlpito pode bem dar-se ao luxo de o fazer porque a Classe, durante o resto do ano também não tem nem tempo,  nem tem paciência,  para mensageiros de “verdades inconvenientes”, anestesiada que está para enfrentar o caos e com o coração palpitante apenas por encontrar o servidor adequado à finalidade de enviar uma peça processual pela internet ou a requerer um registo online, mas que mantém a fé, uma fé inabalável, de que a profissão se aguente, presa por pontas, “ mais uns aninhos” e “que não lhes calhe em sorte” a tal hecatombe.

Marcelo sabe que lhe deixaram a nesga aberta para se imiscuir na Ordem daqueles que deviam ser os mais independentes, daqueles que não deviam aceitar “tutela”, daqueles que nunca poderiam deixar passar a mensagem que é possível domesticar Advogados/as.

Mas não há não ninguém como Marcelo para antecipar a desgraça e aparecer a relembrar quem manda e Marcelo antecipou bem a desgraça que se abateu sobre a Advocacia.

Este novo Ano Judicial e esta nova Ordem dos Advogados merecem uma selfie com Marcelo, para postar nas redes sociais, mas sobretudo, como prova – e para memória futura – no tributo que terá de ser feito àqueles mensageiros ignorados que disseram com desassombro, que escolher mal nestas eleições era, mesmo, caminhar alegre e perigosamente para o fim da profissão. O resultado está à vista: o passado recente e o futuro da Ordem dos Advogados sob intervenção externa.