Estávamos em Janeiro de 1991, teria eu uns seis anos. Era dia de semana e fui acordado meio bruscamente pelos meus pais, porque já era mais tarde do que o habitual e estávamos atrasados para eu ir para a escola. “Começou a guerra” disse-me a minha mãe, “e nós ficámos a ver as notícias”.

Falava, obviamente, da Guerra do Golfo, da intervenção americana e dos seus aliados contra o Iraque de Saddam Hussein em defesa do Kuwait. Nessa noite – ou talvez algumas noites antes, quando a guerra se avizinhava – eu estava suficientemente alarmado para lhes ter dito que estava “com medo da guerra”, porque “não queria morrer”. Estava convencido que a guerra chegaria a Portugal, e que a vida cá seria algo como o que se tinha vivido pela Europa fora na Segunda Guerra Mundial.

Parece frívolo escrever sobre a Covid-19 quando, por não ser médico, nada tenho a acrescentar às banalidades repetidas por todos, mas parece igualmente frívolo escrever sobre outro assunto que não a Covid-19. Para ser sincero, não me sentia tão apreensivo e até assustado com o que quer que fosse desde esse Inverno de 1991. Nessa altura, era apenas demasiado novo para perceber que não havia grande razão para me preocupar, pois a guerra não chegaria cá. Agora, é difícil ver razão para não estar preocupado.

Na Guerra do Golfo, na da Jugoslávia, na do Kosovo, na do Afeganistão, na do Iraque, na da Síria, nas epidemias do ébola ou da SARS, Portugal foi afectado apenas e só na medida em que qualquer coisa que aconteça no mundo tem consequências um pouco por todo o lado, mas a distância fez sempre com que os problemas verdadeiramente graves se mantivessem longínquos (só a crise financeira não teve esta vantagem, mas apesar de tudo, não teve um impacto comparável a uma guerra ou a uma epidemia). Mas, desta vez, não há distância que nos valha, e o problema não está só mais perto – está cá.

Como qualquer pessoa de bom senso, tenho receio de ficar infectado, de ficar bastante doente se for infectado, de contagiar alguém que possa ficar ainda mais gravemente doente do que eu. Mas como qualquer pessoa de bom senso, tenho receio do que possa acontecer mesmo que nenhum dos receios anteriores se confirme.

Como toda a gente, tenho receio de que os hospitais portugueses – públicos e privados – não tenham meios para lidar com a quantidade de casos que irão surgir. Tenho receio de que a anormalidade social em que agora vivemos, com as pessoas a não poderem trabalhar, se prolongue por demasiado tempo, afectando não só as suas vidas como a economia em geral.

Tenho receio de não poder confiar na capacidade das autoridades para lidarem com a epidemia. Tenho receio de não poder confiar nos argumentos de quem não confia nas autoridades. Tenho receio de que as outras pessoas confiem nos argumentos e recomendações daqueles em quem não devem confiar. Tenho receio de que as medidas necessárias para lidar com os problemas que as economias portuguesa, europeia e mundial enfrentarão nos próximos meses venham a ser a origem de uma enorme crise financeira daqui a dois ou três anos.

E, acima de tudo, tenho receio de que por muito que o contágio decresça significativamente nos próximos meses, a doença acabe por se tornar endémica, circulando – como a gripe – permanentemente na população, e fazendo-se sentir de forma mais significativa nas alturas do ano em que o vírus encontra melhores condições para sobreviver e se propagar: no Inverno.

Daqui a seis, sete, oito meses, poderemos vir a ter um problema ainda maior do que aquele que enfrentamos agora. Se, ao contrário do que o governo inglês aparentemente esperava, os doentes com Covid-19 não desenvolverem imunidade, e a doença continuar “por aí” nos meses mais frios e com o ar mais seco, terá um comportamento semelhante ao que conhecemos da gripe, apenas com uma taxa de mortalidade muito maior (entre dez a quarenta vezes superior).

E, ao contrário do que aconteceu com a SARS, por exemplo, que se conseguiu estancar com medidas de controlo da saúde pública suficientemente fortes, o vírus da Covid-19 não parece ser contagioso apenas quando os infectados já apresentam sintomas. Se assim fosse, seria bastante mais fácil isolá-los atempadamente, e assim conter o avanço da doença e fazê-la desaparecer.

Mas como o vírus da Covid-19 se transmite mesmo antes dos seus sintomas se manifestarem, os seus portadores podem contagiar sabe-se lá quantas pessoas antes de as autoridades os poderem detectar, dificultando esse esforço de contenção e erradicação.

É claro que não estamos à beira do fim do mundo. A grande maioria de nós irá sobreviver, e a nossa vida vai voltar ao normal. Mais tarde ou mais cedo, alguém desenvolverá uma cura, e alguém desenvolverá uma vacina. Mas, até lá, a Covid-19 terá custos para todos nós, e o pior é que não sabemos mesmo quão grandes eles serão. Até lá, só podemos mesmo ter medo, cuidado e paciência.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.