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António Calvário: o artista eterno numa Lisboa esquecida

Marcámos encontro com António Calvário nos Armazéns do Chiado para tentarmos encontrar a antiga loja da Valentim de Carvalho que, na Rua Nova do Almada, apareceu e desapareceu. O artista, que se aproxima dos 60 anos de carreira, conta ao Jornal Económico como aquela rua ficava cortada só para as pessoas o verem, na década de 60, e onde pode ser visto agora.
6 Maio 2017, 15h00

É um dia como os outros em frente aos Armazéns do Chiado. Talvez a única coisa que se estranhe seja o calor de final de tarde. O sol incide na roupa com intensidade. As pessoas passam e confundem-se umas com as outras. Depois de um olhar atento – como quem espera por alguém –, a multidão apressada em mais um dia de trabalho contrasta com os turistas, mas há uma pessoa que se sobressai: caminha pausadamente, com casaco de pele, óculos escuros, anel no mindinho esquerdo, rosto e cabelo meticulosamente cuidados, que não denunciam os anos que já viveu. É António Calvário, e mesmo que ninguém o reconheça naquela confusão, há algo de inconfundível no artista que representou Portugal pela primeira vez no Festival Europeu da Canção, em 1964.

Aquele foi o sítio escolhido por António para a nossa conversa pelas memórias que lhe traz. “Sempre que era público que vinha aqui, quando saía um disco meu ou não, se eu tivesse anunciado que viria para assinar autógrafos, por exemplo, estas ruas, de alto a baixo e para os lados, ficavam completamente repletas de gente. Não havia trânsito, era cortado, a polícia não dava conta das pessoas”, descreve, enquanto gesticula.

António fala do “início dos anos 60 até a uma parte dos anos 70”. A loja da gravadora discográfica Valentim de Carvalho ficava no número 95 da Rua Nova do Almada. Estamos lá perto, à procura daquilo que já não existe. António Calvário diz ter a sensação de ser por ali, mas não se recorda ao certo da porta. Mas isso não demove o artista, que agora vive na margem sul do Tejo.

Calvário entra destemido num estabelecimento de acessórios para o lar. Indaga-se se seria aquele o sítio. Procura resolver a questão chamando uma funcionária que está na caixa: “Sabe se era aqui a loja da Valentim de Carvalho?”, pergunta, como se a colaboradora o conhecesse. A pouca idade da jovem não lhe permite dar uma resposta satisfatória. “Não sabem se era aqui”, diz-nos, enquanto segue para a porta ao lado.

Saímos à rua cuja história o incêndio de 25 de agosto de 1988 consumiu. Por isso, “é muito raro” o intérprete de “Oração” ali se deslocar: “Deixei de vir para aqui porque perdi todos os meus contactos… os sítios onde eu vinha, as lojas, pastelarias, a gente conhecida… deixei um bocado esta zona… com o incêndio foi-se uma parte da minha história”, diz.
Entre as portas número 103 e 95, António Calvário volta a encarar a Rua Nova do Almada. Percorremos a memória, que diz ser terrível, visto esquecer-se de muitos episódios de uma vida “muito, muito boémia”. Porém, as grandes recordações, como não poderia deixar de ser, estão lá, não tanto para serem vividas outra vez – porque o seu tempo é agora –, mas por também ser aquilo foi.

Naquela altura, na década de 60, António Calvário editava singles atrás de singles, depois de em 1961 ter vencido o prémio Rei da Rádio, cognome pelo qual Filipe La Féria o trata. Mas já lá vamos. No ano seguinte foi distinguido com um Óscar atribuído pela Casa da Imprensa. Em 1963 estreou-se no teatro e um ano depois atinge o estrelato: vence o Grande Prémio TV da Canção Portuguesa e representa Portugal no Festival Eurovisão da Canção, na Dinamarca.
Tudo isto para explicar as seguintes palavras: “Não tenho culpa de ter o nome que tenho e a popularidade que tenho; naquele tempo, neste momento, não poderia estar aqui a falar consigo. As pessoas vinham logo a correr, aos gritos, era impossível durante o dia estar aqui. Era impossível andar na rua”.

Elogios na rua
Continuamos na demanda pela descoberta do número da porta da gravadora Valentim de Carvalho. Agora é numa loja de uma conhecida marca de roupa onde entramos. António vai à frente, num regresso ao tempo que está lá atrás. 50 anos atrás. Só se vê roupa e gente nova. O artista português resigna-se. Optamos pela solução moderna e googlamos: “primeira loja da Valentim de Carvalho”; 30 segundos depois estamos a tirar fotografias à porta. Era aquela.

O fotógrafo pede-lhe que mude a forma como tem o casaco. António contesta: “Este blusão não se usa assim”. Olha para o resultado para exclamar um “está bem gordo, o rapaz!”. A rua é naturalmente movimentada e o sol convida a que mais pessoas saiam de casa. Os flashes interrompem-se para deixar passar os transeuntes. António Calvário não cessa a pose. As pessoas apercebem-se do aparato, mas não o reconhecem – a maioria delas, outras sim.

“O seu estado de conservação está óptimo”, diz uma fã, que interrompe a sessão fotográfica. Depois de o reconhecer, aborda-o naturalmente, para lhe gabar a aparência. “Na altura fazíamos de tudo para seguir as nossas vedetas. O trânsito parava”, revela a mulher de 50 e poucos anos, corroborando aquilo que António já nos havia explicado. A forma para lidar com o público nunca muda, conta-nos o artista português, – é sempre a sorrir.

Calvário vai fazer 60 anos de carreira e não tem, nem teve, “nenhuma razão de zanga com o público; nem os artistas têm esse direito. Sou sempre bem-recebido e isso é um incentivo para que possa continuar. O público, às vezes, questiona-se [nos períodos em que artistas desaparecem da cena musical], mas não o posso culpar. Posso é fazê-lo em relação a uma parte empresarial”, aponta, para concluir: “Eles não são obrigados a contratar, mas também é graças a nós que eles têm trabalho”.
À pergunta inevitável sobre como se sente num espaço onde outrora fora um ídolo, no epicentro de uma vida mediática difícil de igualar, António Calvário reitera não lhe custar ver tão pouco desse tempo atualmente. “Não custa nada. Não custa, porque nunca parei. Gostei de tudo o que vivi, com as coisas positivas e negativas, sendo que os bons suplantam, e de que maneira, os maus momentos, que não vou dizer que não existiram”, frisa Calvário, negando-se preso ao passado.

O artista mostra-se completo, não preferindo aquele estrelato noutra época, como agora, em que as tecnologias tornam tudo muito mais exponencial: “Gostei de todas as alturas em que vivi. Tive oportunidade de conhecer o mundo, as pessoas, adquirir experiências. A vida tem passado e aprendi muito; não sou aquele saudosista de ‘ah! Quem me dera ter 20 anos. Até porque não me apercebo da idade que tenho”, conta, sorrindo.

Tal proeza acontece com 78 anos, muito porque o artista continua a cantar, em cena. Está integrado numa companhia de teatro, em Almada, na peça “Da revista ao musical”, onde é cabeça de cartaz com Maria José Valério. “O importante é também estar rodeado de gente nova”, frisa. “Essa mistura de novos e veteranos… porque os tempos são outros, tem de haver atualizações, e os mais novos ensinam os mais velhos”, diz.

Dias cheios
Esse é um ingrediente que faz parte da receita para os portugueses terem António Calvário sempre na memória: “As pessoas não se esqueceram de mim, talvez porque continuei sempre a cantar”. Mesmo que não tivesse, o público jamais esqueceria. “As pessoas saberiam sempre quem eu fui”, assegura, enquanto sublinha que não é isso que o move. “Quero continuar a ser o que sou. Ser até ao dia em que desaparecer fisicamente. Ser enquanto sentir que estou bem e posso continuar a cantar”. Ser no presente.

A ideia é alicerçada enquanto explica o que ocupa durante a semana. “Tenho muita coisa para fazer: O teatro, aulas de canto, convites para eventos, inaugurações das coisas que vão acontecendo…” como aconteceu com a nova versão do espetáculo “Amália”, com Filipe La Féria como encenador. “O La Féria é uma pessoa fantástica; pena tenho eu de ele não se lembrar de mim para fazer parte de um espetáculo dele, nem que seja uma pontinha… tenho pena mas não faz mal, ele dá-me sempre um grande abraço quando me vê; chama-me o rei da rádio. Sabe perfeitamente quem eu sou”.

António Calvário teve de se reinventar ao longo dos anos. Cantou em cabarets durante algum tempo depois do 25 de Abril e juntou-se ao circo depois de um desaire como produtor de um filme. “Não me vejo doutra maneira a não ser a cantar ou a representar, seja onde for”, conta, à medida que se depara com o inevitável. “Acima de tudo canto, mas sei que cantar não poderei fazer até muito mais tarde; nessa altura vou ter de me resignar, e terei muita pena, pois quando estou uma semana sem cantar fico muito desassossegado”.

“Por isso é que mantive a vida inteira os exercícios de voz e canto”, revela, antes de surpreender o interlocutor. “E mantenho-os até hoje; amanhã tenho uma aula”, diz. António Calvário mostra-se assim, a pouco tempo de completar 60 anos de carreira – empenhado no presente e com “ilusões” para o futuro. “Quem sabe um dia sai-me o Euromilhões… eu jogo todas as semanas e antes de sair começo a fazer projetos”, conta.

“Sabe que faz bem viver dessas ilusões?”, pergunta, e exemplifica de seguida: “Olhe um dos projetos era um teatro. Aí posso trabalhar as vezes que quiser e quando bem me apetecer; e há de ter o meu nome. Teatro António Calvário. Era uma das coisas que gostava de fazer. E depois dava trabalho aos meus colegas… um teatro não se faz de uma pessoa só!”, detalha o músico, que não se vê a abrandar.

Por enquanto, vai fazendo aquilo de que mais gosta – cantar e representar. O cuidado com a voz que tem todas as semanas é para ver se está sempre tudo bem. É esse tipo de trabalho, por exemplo, que falta aos cantores que vão aparecendo e depois esfumam-se, diagnostica. Será que já pensou dar aulas de canto a jovens? “Poderei dar dicas e instruções… talvez com mais idade”, confidencia, pois agora ainda tem 78 anos de juventude.

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