Há qualquer coisa de heroica na figura de um refugiado: alguém que possivelmente sobreviveu a um conflito militar ou a uma perseguição, que atravessou milhares de quilómetros (entre deserto e mar aberto) enquanto era sujeito a várias formas de tortura e exploração; e que o fez sabendo de antemão que todas estas adversidades poderiam surgir no seu percurso até à Europa — e mesmo assim arriscou!

Porém, este mesmo indivíduo, uma vez chegado ao espaço europeu, não é visto na sua dimensão de triunfo individual do espírito humano, ou até como objeto de compaixão, mas antes como uma ameaça indefinida à nossa segurança e aos nossos projetos de vida. Foi neste contexto que, em junho passado, Itália negou a um barco com a sua bandeira (o “Aquarius”) a entrada num porto italiano e o desembarque de cerca de 600 refugiados e migrantes salvos no mar Mediterrâneo. Após essa recusa, o navio acabou por ser admitido num porto espanhol; e em Portugal houve quem propusesse a atribuição da bandeira portuguesa a esse navio de forma a possibilitar o desembarque de refugiados em território português.

A ideia é certamente fundada em sentimentos filantrópicos e tem pelo menos o mérito de ver em cada indivíduo um rosto humano, e não um rosto de ameaça. Porém, não é isso que se discute: no direito (tal como na ética) os fins não justificam os meios; e atribuir a nacionalidade portuguesa a um navio sem nenhuma conexão com o Estado português é ilícito em face da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, independentemente de se tratar de uma embarcação ligada ao salvamento de refugiados, ao transporte de mercadorias, ou a qualquer outra atividade. Não é a bondade da operação que justifica a atribuição da nacionalidade, mas a sua ligação a um Estado.

Claro que dizer isto parece de uma hipocrisia enorme: como se pode elogiar o rosto humano e o heroísmo daqueles que fugiram da guerra, da fome ou da perseguição e depois negar-lhes a entrada no nosso território? A resposta é simples: atribuir a nacionalidade portuguesa a este navio não é a única forma de admitir refugiados em Portugal. Há outras formas, já testadas e válidas em face do direito internacional, que permitem a um Estado admitir no seu território refugiados.

E, já agora se diga, que o permitem fazer de uma forma verdadeiramente democrática: a integração destes refugiados numa comunidade política exige um esforço de todos os membros dessa comunidade. Mas, para que tal suceda, é necessário que sejam os órgãos do Estado (que representam toda a comunidade) a definir os termos dessa integração. O que não pode suceder é que um sector não representativo da sociedade civil (seja um grupo de cidadãos, ou uma ONG) se arrogue no direito de definir e impor a todo um país a política de admissão de refugiados e migrantes, por mais benigna que seja essa política: novamente, não são os fins, mas os meios que estão em causa.