Na passada semana, a Europa foi confrontada com a situação inusitada de um barco car­regado com mais de 600 refugiados, ao serviço de duas organizações não governamen­tais internacionais, avariado e correndo sério risco de vir a afundar em pleno Mediter­râneo, ter sido impedido de atracar em qualquer porto italiano, ficando à deriva e dei­xado à sorte do destino nas águas daquele mar.

A posição assumida pelo novo governo italiano, tributária da ideologia da Liga Norte, a nova força governamental de Roma, esteve longe de colher a compreensão da comuni­dade internacional e chegou a ser responsável por uma subida da escalada da dialética en­tre os governos de Itália e de França, a ponto de ter ameaçado a realização da prevista cimeira franco-italiana. Mas não foi só entre França e Itália que a crise do Aquarius fez estragos políticos. Na própria Alemanha, símbolo da estabilidade governativa na Europa, a coligação democrata-cristã e social-democrata atravessa um dos seus piores momen­tos; não por desacordo entre os seus partidos, mas por divergências no seio do próprio bloco democrata-cristão, com a CSU bávara a criticar forte e duramente a posição assu­mida por Angela Merkel na gestão deste assunto, acusada de ser branda e permissiva em matéria de acesso de refugiados ao território alemão. E esta crise só não teve efeitos mais perversos e potencialmente devastadores porque o novo presidente do governo espanhol, o improvável Pedro Sanchez, viu no tema uma oportunidade de se estrear a brilhar na cena internacional e abriu os portos espanhóis ao Aquarius. A cidade e o porto de Valência acabariam por ser o destino do barco e o local de segurança imediata para os seus mais de 600 ocupantes. Ao mesmo tempo que estes factos se foram sucedendo, cada vez maior número de Estados da União Europeia vai dando mostras do desconforto com as posições assumidas pela União em matéria de refugiados. Hoje, são quase tantos os que contestam as posições comunitárias quantos aqueles que a sustentam. O que, por si só, é suficientemente esclarecedor e revelador do desacerto comunitário nesta matéria fulcral para a segurança do nosso continente.

O caso italiano, todavia, merece uma menção especial. A Itália – o território que corres­ponde à atual república italiana – é, historicamente, um dos berços da civilização euro­peia e ocidental. A pátria do Renascimento e de uma plêiade de europeus ilustres que contribuíram para a elevação do espírito e da ideia de Europa, permitindo a contribuição para a construção de uma civilização de que nos orgulhamos. Porém, se dependesse do atual governo de Itália, o Aquarius não tocaria em solo europeu e o destino de mais de 600 vidas humanas seria perdido nos fundos do Mediterrâneo, juntando-se aos muitos milhares que já por lá jazem. Esta seria a consequência direta do exercício do poder em Itália por Matteo Salvini – em coligação com o Movimento 5 Estrelas – e os seus aliados populistas. Este teria sido um novo e eloquente exemplo do que significa o acesso ao poder e do condicionamento do poder pelas novas correntes populistas, de esquerda ou de direito, num número cada vez maior de Estados europeus.

Ora, no Aquarius não estavam sírios, nem líbios, nem tunisinos, nem homens, nem mu­lheres, nem crianças. Estavam mais de 600 vidas humanas em perigo e em risco de nau­frágio. E não faz parte da tradição civilizacional e cultural da Europa sermos indiferentes ao sofrimento e à ameaça de vidas humanas. Aliás, todos aqueles que, no passado, vi­raram as costas a essa tradição, constam hoje do horrendo rol de desprezíveis figuras que sempre pensámos não voltar a ver nos lugares de direção de qualquer Estado euro­peu durante as nossas vidas. Sempre acreditámos que a memória histórica não seria apagada nem obliterada da memória coletiva da Europa e dos europeus. E que os ensi­namentos colhidos no passado seriam suficientemente dissuasores para impedirem no­vas aventuras e novos extremismos. Hoje, com preocupação, vemos que essa nossa es­perança está longe de ser uma certeza. E, infelizmente, não nos podemos considerar a salvo da repetição de catástrofes passadas.

Essa é a verdadeira crise que a Europa atravessa. Muito mais importante do que crises de governança, institucionais ou de qualquer outro tipo. Porque essa revela uma verdadeira crise de valores que está a colocar no topo da liderança de Estados europeus cada vez mais importantes personagens para quem esses valores, a civilização europeia, a história, a tradição e a cultura da Europa pouco ou nada dizem. E, ou há um urgente e verdadeiro renascimento do espírito europeu, ou o futuro da Europa, sobretudo desta nossa Europa da União, ou o que dela resta, deve ter-se por seriamente ameaçado e com horizontes muito sombrios. Acordemos enquanto for tempo.