O caso dos abusos sexuais de menores atingiu o coração da Igreja Católica. Embora o fenómeno envolva apenas uma muito pequena parcela dos sacerdotes em serviço nos últimos setenta anos, reveste-se de particular gravidade atendendo à primacial missão da Igreja de condução moral dos crentes. A Igreja viu-se atingida não apenas pela corrupção moral de vários dos seus pastores, mas também pelo silêncio que erigiu em torno das falhas destes, o que a comprometeu como um todo.
Porém, o reconhecimento pela Igreja dos seus erros, seja por actos seja por omissões, relembra a condição humana – logo falível –, dos seus membros e o propósito assumido de remissão dos seus pecados recondu-la ao caminho nunca inteiramente percorrido do aperfeiçoamento moral. É um passo correctivo que nos interpela sobre a importância do arrependimento e da subsequente reparação dos erros que conduz ao perdão. Em suma, a Igreja, feita de homens, segue ela mesma o percurso que recomenda ao Homem.
Infelizmente, a sociedade ou, pelo menos, a parte dela dotada do poder de fazer a opinião, não mostrou compreensão relativamente ao acto de contrição praticado pela Igreja, o qual – diga-se – não foi seguido por outras instituições onde os abusos se praticaram, praticam e se continuarão a praticar se nada for, entretanto, feito para os travar.
A exigência de condenação imediata dos sacerdotes acusados e as críticas relativamente à passividade da Igreja face aos denunciados, largamente injustas pois a Igreja foi lesta, sem ser leviana – como lhe competia –, na análise dos casos que lhe foram apresentados pela Comissão Independente, revelou uma intolerância e uma sede vingativa típicas das multidões que outrora se acotovelavam junto aos patíbulos à espera de jorros de sangue e de cabeças a rolar.
Mesmo personalidades com especiais responsabilidades públicas assumiram tal atitude, como o líder da oposição, que se apressou a apontar o dedo, lamentado a suposta falta de diligência dos bispos escassos dias após terem tomado conhecimento da lista dos sacerdotes denunciados. Mais prudentes se revelaram os dirigentes do PS, mantendo reserva quanto ao assunto, ora por ser partido de governo, ora por ter aprendido a inteligente lição de Mário Soares de evitar confrontos com a Igreja.
A própria Comissão Independente não esteve bem, não apenas porque forneceu à Conferência Episcopal dados equívocos, pois da lista elaborada constavam numerosos sacerdotes já falecidos e alguns desconhecidos, além de outros já sancionados, facto que – note-se – atesta que o combate aos abusos sexuais começou bem antes do seu relatório, mas também porque vários dos seus membros entraram numa troca de argumentos com os bispos, pouco consentânea com a sua missão.
Assumidos os erros, agora é o tempo da reparação possível. Diversos sacerdotes foram já suspensos e serão sujeitos aos processos civis e canónicos aplicáveis e as vítimas serão devidamente acompanhadas. É também o tempo da prevenção, cabendo à Igreja seleccionar e formar os sacerdotes com maior exigência e critério, tendo presentes as palavras de Bento XVI, que dizia não ser o sacerdócio um direito. À sociedade cabe, por seu turno, acompanhar o trabalho da Igreja e moderar a vozearia acusatória a bem, também e sobretudo, das vítimas.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.