Tem sido um longo adeus, o do italiano que ainda dirige o Banco Central Europeu (BCE), mas com um inesperado twist no final. A primeira vez que me lembro de ouvir um jornalista perguntar a Mario Draghi sobre a sucessão no cargo foi em março de 2018. A pergunta foi feita de forma velada, pois faltava na altura um ano e meio para o final do mandato de oito anos, que termina agora, no final deste mês. Questionado sobre as caraterísticas que produzem um bom presidente do banco central da zona euro, Draghi respondeu que isso cabe aos outros julgar. Uma segunda pergunta, também velada, enervou o habitualmente calmo italiano e levou a uma resposta mais ríspida – “vocês fazem essa pergunta como se eu fosse sair amanhã, mas tenho ainda bastante tempo de mandato”.

Nessa altura a perspetiva era de um final de mandato suave e relativamente previsível, mas não sem desafios. Passados quatro meses, no pico da retoma económica, Draghi pôde festejar o sexto aniversário da frase que vai marcar o mandato: “tudo que for necessário para preservar o euro”. Nos meses seguintes, o BCE iria preparar-se para desmontar o arsenal que implementou para salvar o soldado euro. A ideia era Draghi no final poder dizer que tomou as medidas ‘anormais’ (como juros em mínimos e um shopping binge para abater as yields) e que resultaram tão bem que até deu para ‘normalizar’ a política monetária antes de sair de cena.

O italiano ainda conseguiu iniciar esse processo ao terminar as compras líquidas de ativos no final do ano passado. Mas os ventos da guerra fria já nessa altura sopravam fortes e acabariam por obrigar o BCE a nova inversão de marcha. Com o conflito aduaneiro iniciado por Donald Trump a fazer da economia global a principal vítima, o banco central primeiro pediu tempo, depois sinalizou que ia agir e em setembro iniciou a inversão.

Do pacote de novos estímulos, o mais controverso é o relançar do programa de compras, o Quantitative Easing (QE). Na conferência após a decisão, Draghi admitiu que houvera “diversidade de pontos de vista”, mas também uma clara maioria a favor na reunião dos Governadores. As atas demonstraram, no entanto, um fosso enorme, com um terço dos decisores contra o QE 2.0. Pior, Draghi terá ignorado o conselho do comité de política monetária do BCE, algo que fez apenas uma mão-cheia de vezes em oito anos.

Draghi poderá ter razão na estratégia. Face a ventos desfavoráveis é preciso estar preparado para evitar uma recessão.Tem certamente razão quando apela aos governos que ajudem com estímulos orçamentais. Mas os opositores também têm armas. Poderá ter sido cedo demais, dizem, deixando o BCE sem munição quando a crise chegar.

A lógica de Draghi pode ter sido tomar a decisão mais difícil para permitir uma transição suave à sucessora, Christine Lagarde, que vai entrar em cena numa altura de elevada incerteza. Mas o modo como o fez vai deixar marcas.

Primeiro, vai passar a Lagarde um Conselho de Governadores mais dividido que nunca. A francesa vai ter de usar toda a experiência que acumulou na liderança do FMI para criar consensos.

Segundo, a lenda de Draghi poderá ficar manchada. Ao invés de ser lembrado como o general que reuniu as tropas para preservar a pátria, poderá ficar na história como o líder que sucumbiu à atração do poder e comprometeu a paz.

O último ato à frente do BCE, a reunião da próxima quinta-feira, deverá ser o oposto da serenidade que Draghi demonstrou durante a crise. Poderá mesmo ser um campo de batalha.