Há uma percentagem considerável de americanos que, como argumento a favor da manutenção das leis permissivas e cultura de porte de arma daquela terra, usam o pseudo-argumento brutalmente idiota de que “as armas não matam pessoas, pessoas é que matam pessoas”.

Mas, entrando nesta simplificação falaciosa, podemos dizer que, de facto, as armas não têm a culpa – porque elas não se poderão jamais auto-regular, não se juntarão todas a seguir a mais um homicídio em massa e pedirão ao Congresso para as tornarem de escrutinadíssimo acesso e, acima de tudo, as armas não se auto-idolatram.

No rescaldo dos atentados do passado fim-de-semana que mataram 31 pessoas em El Paso, Texas e Dayton, Ohio, quem lesse os títulos da reacção do presidente Trump até poderia achar que se tratava de um indivíduo presidencial, um flashback a tempos mais esclarecidos, em que os líderes não se enganavam no nome das cidades a que pretendiam demonstrar apoio. Trump condenou fortemente a supremacia branca, o racismo e o fanatismo e pediu soluções bipartidárias para terminar com o flagelo dos shootings na América (que, este ano, já regista mais tiroteios do que houve dias). Até aqui tudo bem.

O problema foram os motivos que Trump apresentou para estes tiroteios. Refém da NRA (Associação Americana de Armas de Fogo) e da sua base eleitoral conservadora e rural, que venera Deus e espingardas de assalto, não houve uma única referência neste discurso a restrições ao porte de arma.

Falou-se da violência dos videojogos (que, existindo em todo o mundo, só nos EUA parecem ter este efeito) e de maior controlo sobre os conteúdos na internet e, especificamente, nas redes sociais (onde apoiantes de Trump e da extrema-direita proliferam e disseminam mentiras e teorias da conspiração, com base em interpretações estúpidas da “liberdade de expressão”, esse termo muito em voga nos últimos anos para desculpar pontos de vista claramente xenófobos e intolerantes).

Falou-se de doenças mentais e verificação de antecedentes (algo que não teria impedido qualquer um dos atacantes de obter as suas armas, visto que, apesar de um ter colocado online um manifesto anti-imigração e outro ter uma lista de alvos a abater no liceu, nenhum deles tinha antecedentes criminais ou uma doença mental clinicamente diagnosticada).

E, claro, falou-se de reformas na imigração (visto que um dos atiradores queria matar o máximo de hispânicos possível, suponho que isso servirá como mais um argumento para construir o muro na fronteira sul).

Ao contrário de países verdadeiramente desenvolvidos e menos fanáticos, como a Austrália ou a Nova Zelândia, em que um homicida em massa armado com espingardas de assalto foi suficiente para espoletar reformas legislativas, na América continua a alimentar-se a ilusão de que armas são equivalentes a liberdade, ou de que o cidadão comum precisa de armas para se proteger de outros cidadãos (muito típico de países do primeiro mundo, esta sensação de segurança) ou, melhor ainda, do Estado (que nem tem mísseis, aviões, drones ou armas nucleares e, portanto, é perfeitamente enxotado com umas rondas de uma AR-15).

Nesta terra de malucos e acéfalos, a solução sugerida é comprar mochilas à prova de bala ou armar professores, porque “a única forma de parar um bad guy com uma arma é um good guy com uma arma”. Que lógica fantástica. Dados os números de assassinatos neste farol da liberdade e da democracia, a América deve mesmo ser um país de bad guys.

A facção Republicana do país continua a consumir este rol de contra-informação patrocinado pela Fox News (aquele canal que diz combater as notícias mainstream, ao mesmo tempo que ocupa o primeiro lugar das audiências de canais televisivos há anos) e pela NRA, que culpam tudo e todos, desde a “ausência de Deus e da igreja” na vida das pessoas, jogos de computador, erva e homossexualidade, excepto as armas de fogo.

Continuam a engolir e reproduzir outros argumentos estapafúrdios como “quem quer uma arma arranjá-la-á, seja legal ou não” – e são estes os mesmos idiotas que acham que um muro vai travar a imigração ilegal, ou que a erva e o aborto, sendo ilegais, desaparecerão da sociedade americana. Bem, ao menos torna-se mais perceptível porque é que estes eleitores menosprezam e até se revoltam com os emigrantes que buscam fugir de cenários de violência extrema e quase-guerra – é que na América não estarão muito mais seguros.

Quando foi fundada a União, seria compreensível a relação próxima dos cidadãos com armas de fogo: em terras vastíssimas, onde pedir ajuda seria uma tarefa inglória, e com indivíduos marginais sem escrúpulos mas com muita ganância, a Ordem precedeu a Lei; mas isso foi no século XVIII, a altura do Wild Wild West, numa sociedade que pouco tem que ver com a actual.

A América debate-se agora com a necessidade de escolher entre os valores retrógrados, desadequados e perigosos associados à cultura das armas, ou aperceber-se que uma sociedade verdadeiramente desenvolvida transpira segurança não pela ameaça das armas, mas pela consciência colectiva de que a violência só gera mais violência, aliada a uma economia inclusiva que extingue a necessidade das classes mais baixas se envolverem em crime e brutalidade.

É necessária uma mudança de mentalidade, ou, caso queiram continuar a ser um país de selvagens, admitam colectivamente que a veneração às armas é mais importante do que a segurança dos cidadãos. Porque, continuando neste registo, o país que os americanos sempre exaltam como a “terra dos livres” e a “melhor democracia do mundo” é, na realidade e citando o seu querido Presidente, um “shithole”.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.