Nas últimas semanas, o tema da crise migratória voltou ao topo das agendas mediática e política, como já não sucedia desde 2015.

Infelizmente, não obstante a relevância do tema, a atenção que lhe é dedicada flutua muito em função dos acontecimentos, em especial das grandes tragédias.

O ano de 2015 foi marcado por uma entrada de pessoas sem precedentes na União Europeia – mais de um milhão –, e por um aumento do número de mortes, sobretudo na travessia do Mediterrâneo.

Se olharmos para os dados estatísticos disponibilizados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), os anos de 2014 e de 2015 mostram um aumento exponencial do número de entradas. Só no mês de outubro de 2015, chegaram à União Europeia cerca de 200.000 pessoas, o que é superior ao número de chegadas anuais nos anos anteriores.

Esta situação manteve-se até março de 2016. Verificou-se uma queda abrupta dos números de chegadas a partir dessa altura. A explicação para este decréscimo é muito provavelmente o anúncio da declaração conjunta UE-Turquia, que incentiva este país a reter os requerentes de asilo, impedindo-os assim de chegar à fronteira externa da União Europeia.

Os números de chegadas desde então voltaram a níveis comparáveis com os existentes antes da crise de 2015. De acordo com os dados do ACNUR, e olhando para as rotas, verifica-se um decréscimo acentuado a partir de 2016 da rota do Mediterrâneo Oriental, sobretudo a rota Grega, que havia sofrido o aumento significativo em 2015.

Verifica-se ainda, sobretudo nos dois últimos anos, um aumento moderado das rotas do Mediterrâneo Central e Ocidental, o que pode revelar a natural tentação de os requerentes de asilo, impedidos de chegar à Europa pela rota Turquia-Grécia, procurarem outros pontos de entrada. Neste movimento é especialmente importante olhar para a Líbia que, sendo um Estado falhado, revela-se particularmente vulnerável às redes de imigração clandestina, tráfico de seres humanos e outro tipo de criminalidade transnacional.

Perante esta redução dos números, poderíamos concluir que a crise migratória de 2015 foi ultrapassada e se encontra resolvida. Trata-se de uma conclusão falsa.

Desde logo, nada evoluiu, muito pelo contrário, nas situações que, na origem, contribuem para o aumento do número de refugiados, deslocados, e migrantes em geral. O conflito na Síria não foi resolvido, nem a instabilidade no Médio Oriente, nem o radicalismo religioso crescente em alguns países da África Subsaariana. A estes conflitos acrescem outros fatores como a pobreza, a fome, a dificuldade de acesso à água e alimentação (food insecurity), ou o aquecimento global e a subida do nível das águas. Nenhum destes últimos factores, sublinhe-se, é qualificável como conferente de asilo à luz da Convenção de Genebra de 1951 para a proteção dos refugiados.

Depois, como referido, a redução nos números deu-se em consequência de uma declaração conjunta com a Turquia, que se revela muito problemática. De um ponto de vista jurídico, é duvidoso que a declaração seja compatível com o Direito Internacional e Europeu de proteção dos refugiados, por três razões fundamentais: i) versa apenas sobre cidadãos sírios, sendo por isso discriminatório, ii) prevê um mecanismo de troca de um sírio por outro, o que não parece respeitar a dignidade humana, e iii) considera a Turquia o primeiro país seguro, o que também não é evidente que suceda.

Não por acaso, foi juridicamente qualificado como uma declaração política conjunta e não como um acordo para evitar a jurisdição dos Tribunais, em especial dos Tribunais Europeus, havendo jurisprudência que confirma essa qualificação. Todavia, olhando para o seu conteúdo, possui todas as características de um acordo internacional estabelecendo, desde logo, direitos e obrigações para as partes.

Politicamente, a declaração é também muito problemática, na medida em que transfere para a Turquia uma importante arma negocial. Com efeito, o regime turco tem ameaçado com a suspensão – ou mesmo suspendido temporariamente – o acordo, a pretexto de vários outros motivos com ele não conexos, demonstrando assim a enorme alavancagem negocial que ele lhe dá. Aliás, do próprio texto do acordo resultam para a Turquia contrapartidas financeiras e deveres de emissão de vistos por parte dos Estados membros da União Europeia para cidadãos turcos, matérias espúrias ao tema da proteção dos refugiados.

Finalmente, o número de refugiados oriundos dos países em conflito e presentes em campos de refugiados na Turquia, Líbano, Jordânia ou Egipto não tem diminuído, muito pelo contrário, o que faz crer que, a qualquer momento, o número de entradas pode voltar a aumentar.

Em qualquer caso, o regresso do tema das migrações à agenda mediática dá-se numa altura em que os números não o justificam. A razão próxima para esta maior atenção foi a recusa de Itália e Malta em receber o navio Aquarius que tinha a bordo mais de 600 pessoas.

Tratou-se, assim, de uma razão essencialmente política, tendo o navio acabado por aportar em Espanha, ficando as autoridades espanholas responsáveis pelo primeiro apoio humanitário e pelo processamento, nos termos do regulamento de Dublin, dos pedidos de asilo e seu reencaminhamento para os países que os devam decidir.

Esta renovada atenção ao tema tem, assim, razões muito pouco meritórias. Recorde-se que, no auge da crise de 2015, a chanceler alemã Angela Merkel havia produzido declarações muito corajosas no sentido de a Alemanha estar disponível para receber cerca de um milhão de refugiados, o que veio efetivamente a acontecer, tendo já excedido esse número. Recorde-se ainda que, em 2015, as reações populares à chegada de refugiados era, em geral, positiva, sobretudo em países como a Alemanha, com imagens de cidadãos a receber os refugiados com aplausos e comida na estação de comboios de Munique, por exemplo.

O agravar da crise alterou substancialmente esta situação. Desde logo, situações como a existência de várias violações numa noite de passagem de ano em Colónia, ou os atentados terroristas de Paris e Bruxelas levaram muitos cidadãos a, apressada e não comprovadamente, associar o terrorismo e a criminalidade à chegada de refugiados.

Depois, vários partidos populistas, xenófobos e anti-imigração aproveitaram este ambiente para capitalizar eleitoralmente o descontentamento popular que ia grassando. Sucede que este aproveitamento teve resultados eleitorais, ao passo que os que se haviam mostrado favoráveis ao acolhimento de refugiados acabaram por ser punidos eleitoralmente. O exemplo paradigmático disso mesmo foram as eleições na Alemanha, em que a chanceler Merkel vence, mas perdendo boa parte do capital político que havia acumulado, e sentindo grandes dificuldades na formação e manutenção da coligação governamental, em larga medida devido à questão das migrações.

A Leste, a constituição do grupo de Visegrado, e as posições contrárias às migrações de países como a Hungria têm marcado as divisões entre países europeus. Por um lado, Bruxelas entende que estes países têm violado regras básicas resultantes do direito europeu, por outro, estes países consideram – tendo levado, inclusivamente, a sua posição aos Tribunais Europeus – que a União Europeia não pode impor quotas ou quaisquer obrigações de acolhimento de refugiados, por tal matéria se inscrever nas competências e poderes soberanos dos Estados membros.

Exceção a este movimento é talvez a França que, numa campanha eleitoral disputada, acaba por eleger Macron, contra as posições anti-migratórias de Marinne Le Pen, tendo, mais uma vez, o tema das migrações estado no centro do debate.

Mais recentemente, e causa próxima da atual controvérsia, a Itália nomeou um Governo muito polémico, resultante da coligação de partidos populistas, cujo ministro do Interior resolveu procurar aumentar a sua popularidade através da assunção de posições anti-migratórias que, de resto, parecem violar o direito internacional e europeu de proteção dos refugiados.

Em suma, vive-se um paradoxo. Os líderes que cumprem o direito internacional são punidos eleitoralmente por força das erradas perceções da população sobre o tema dos refugiados; os líderes que violam direito internacional não apenas não são sancionados, como capitalizam eleitoralmente as suas posições.

Talvez por essa razão, com a proximidade do Conselho Europeu dedicado ao tema das migrações, Macron tenha proposto a aplicação de sanções financeiras a quem se recuse a cumprir o programa europeu de recolocação de refugiados, o qual, aliás, se encontra muito longe de ser cumprido.

Importa, assim, regressar aos valores europeus do humanismo e da solidariedade, assim como ao respeito ao Estado de direito, sob pena de os populismos virem destruir o que resta da herança e tradição europeias.

Gonçalo Saraiva Matias assina este texto na qualidade de Autor do ensaio “Migrações e Cidadania” da Fundação Francisco Manuel dos Santos