A nossa relação com a economia faz-se, genericamente, através do consumo de bens e serviços que satisfaçam as nossas necessidades e desejos. É no quadro dos bens e serviços que emergem duas dicotomias que gostava de explorar.
A primeira no quadro dos bens, em particular os de grande consumo.
A degradação do poder de compra parece incontornável, sendo que a mesma ocorre num momento em que os produtores se veem obrigados a aumentar a resiliência das suas cadeias de valor. A opção pela resiliência compromete a eficiência das operações e, por consequência, o custo unitário dos bens produzidos.
Com o aumento dos custos, o produtor tem duas opções: (i) pode acomodá-los, diminuindo as suas margens operacionais ou (ii) pode aumentar o preço médio dos seus bens, levando à nossa primeira dicotomia – produtos mais caros para um consumidor mais pobre.
Se, por um lado, o setor produtivo se vê confrontado com o desafio da resiliência, o setor dos serviços aparenta estar perante oportunidades de aumentar a sua eficiência.
Em tese, mesmo com políticas e práticas de eficiência, os serviços tendem a ter maior necessidade de capacidade ociosa nas suas operações: ainda que com bons mecanismos de previsão, há variáveis de incerteza a ditar, por exemplo, a presença física de consumidores no balcão de um banco ou as chamadas para um call center de uma empresa de energia ou de telecomunicações.
O confinamento espoletou, no entanto, a transferência de algumas interações com prestadores de serviços para canais digitais que, por norma, permitem a resolução de problemas do utilizador de forma autónoma (self service), gerando a oportunidade para a empresa efetuar ajustes na sua capacidade instalada de atendimento.
Apesar do aparato do “digital”, que inunda os nossos noticiários e eventos, basta percorrer as estatísticas do Eurostat sobre literacia digital dos cidadãos para perceber que, comparativamente à comunidade onde estamos inseridos, o nosso país se encontra entre os piores performers em quase todos os indicadores.
Aqui somos confrontados com uma segunda dicotomia: serviços tendencialmente mais digitais num país que (ainda) apresenta níveis comparativamente baixos de literacia digital.
Recordemos então a crise anterior: onde observámos uma diminuição de qualidade no cabaz de compras dos portugueses e, não raras vezes, vimos nos noticiários o encerramento de lojas e balcões de atendimento de empresas de serviços (do financeiro ao postal).
Esta crise não só aparenta ser maior em grau, como acrescenta às condicionantes físicas e económicas de acesso a bens e serviços uma camada digital que aumenta desequilíbrios.
Falei em resiliência no quadro empresarial, mas parece-me que na outra face da moeda estão as pessoas que também precisarão dela para ultrapassarem, com dignidade, os desafios vindouros: até porque juntar, aos esquecidos da globalização, os esquecidos da digitalização, é coisa para já dar muita gente.