As eleições para o Parlamento Europeu (PE) do dia 26 de maio foram por muitos anunciadas como as mais importantes de sempre. Passadas duas semanas, pode ser cedo para termos a distância suficiente para ver com nitidez os seus contornos mais relevantes. De facto, uma das características e das complexidades das eleições europeias é a de que os seus efeitos não são imediatos ou podem ser pouco percetíveis quando comparados com os de eleições nacionais.

Ainda eleições de segunda ordem?

Em geral, é assim que os eleitores (e os partidos) as percecionam e por isso não nos espantamos com a aceção de que estas são eleições de segunda ordem em que é natural que a abstenção seja mais elevada. Não se trata da mudança de um governo ou da escolha de um primeiro-ministro. Nem tão pouco parece que pese que possam estar em causa programas ou opções de políticas públicas suficientemente diferenciadoras ou com impacto no dia-a-dia dos cidadãos.

É certo que este quadro de análise se vai tornando cada vez mais incompleto ou até mesmo paradoxal à medida que a União Europeia (UE), em particular na Zona Euro, vai estendendo os seus poderes para áreas que tradicionalmente eram reserva da soberania dos Estados. A própria esfera de poder dos estados não é apenas desafiada pelos instrumentos políticos formais concedidos às instituições europeias, mas também, e inexoravelmente, pela dinâmica de transnacionalização dos problemas e de vários poderes de facto. No entanto, tal não impediu que na leitura dos números agregados da abstenção e dos resultados das eleições de 2014 o modelo de eleições nacionais de segunda se tenha mantido muito presente.

Uma das novidades das eleições de 2019 foi a da participação eleitoral no conjunto dos Estados-membros ter subido pela primeira vez desde que os deputados do PE são eleitos diretamente, situando-se em cerca de 51% (resultados provisórios). Este é o valor percentual mais elevado dos últimos 20 anos e significativamente acima dos 42.61% de 2014. Mais: a participação subiu em 21 países e em sete destes mais de dez pontos percentuais.

O nosso lamento é o de que essa boa notícia não tenha chegado a Portugal. Já foram abundantemente referidas as questões relacionadas com o alargamento do recenseamento eleitoral e o problema de abstenção técnica que parece subsistir. Embora numa análise cuidada esses efeitos não devam ser negligenciados, a questão da participação política não pode ser iludida. Já em 2014 a abstenção em Portugal situou-se acima dos 66%, tendo-se registado uma participação menor em oito países. Em 2019, foram apenas cinco os Estados que registaram uma participação abaixo dos 31,40% verificados em Portugal.

Estes dados merecem especial atenção e que se estude de forma consequente o que poderá ser feito para aumentar a participação. Para além de outras dimensões, como o debate sobre o papel dos partidos políticos e a forma como interagem com a sociedade, existem instrumentos do domínio da administração eleitoral que deverão ser considerados. O aperfeiçoamento da forma de voto antecipado e em mobilidade, a localização e os dias de funcionamento de mesas de voto, o voto por correspondência são situações que têm de ser estudadas. Estes são alguns exemplos, sem entrar no debate relativamente a questões que necessitam de uma reflexão mais profunda, como o voto obrigatório, o voto eletrónico à distância e a idade mínima dos eleitores.

Falso alarme de tsunami ultranacionalista?

Para além da abstenção, o que mais se temia ao nível europeu era que estas eleições se traduzissem, dramaticamente, numa vaga eleitoral de forças políticas radicais. A questão não é nova. Em 2014, vários partidos eurocéticos, partidos ditos populistas e partidos extremistas de esquerda e de direita obtiveram assinalável sucesso nas eleições para o PE. Estes rótulos não são indiferenciados, nem servem, de modo algum, a todos os partidos eurocéticos. Mas todos esses partilham nos seus discursos uma forte crítica à UE e encontram nas eleições para o PE o terreno ideal para o êxito. Não apenas porque o grau de proporcionalidade dos sistemas eleitorais utilizados neste escrutínio, aliado à menor pressão para o «voto útil», propícia a fragmentação eleitoral, mas, também, porque o contexto da UE é fértil para o deflagrar de discursos populistas em que a distância entre o poder e os cidadãos e a exploração da dicotomia elites políticas vs. «o verdadeiro povo» são o mote.

Face à possibilidade de um cenário bastante nebuloso, os resultados das eleições do final de maio não confirmaram as piores expectativas. É certo que a União Nacional foi o partido mais votado em França com 23,31% e 22 deputados eleitos. Mas importa recordar que em 2014 o partido de Marine Le Pen obteve 24,86% e elegeu 23 deputados. Também o resultado de 30,75% do Partido do Brexit de Nigel Farage, a hecatombe dos trabalhistas e, principalmente, dos conservadores não podem deixar de ser sublinhados. Mas é bom ter presente o momento político singular do Reino Unido e o facto de, já em 2014, o anterior partido de Farage, o UKIP, ter sido o mais votado com 26,77% dos votos.

Talvez a vitória eleitoral mais significativa tenha sido a da Liga de Matteo Salvini em Itália, com 34.33% dos votos e 28 eleitos. Sendo a Itália um dos países fundadores e uma das principais economias da UE, este resultado não pode deixar de ser analisado com muita atenção. Talvez a sua relevância imediata se repercuta mais em termos nacionais do que ao nível europeu. Importa sublinhar que, no conjunto das votações, os partidos pró europeus continuam a ser largamente maioritários e que, numa distribuição tendo em conta os grupos políticos da anterior legislatura, a Europa das Nações e da Liberdade obteve 58 lugares em 751. É certo que cresceu de 36 para 58 representantes, mas numa distribuição provisória de deputados por grupo político no PE figura apenas em sexto lugar. Algo que não se assemelha a uma vitória de uma «frente soberanista» ambicionada por Salvini.

A morte dos ‘Sptizenkandidaten’?

Mas, por outro lado, os resultados globais consubstanciaram uma maior fragmentação dos lugares e do poder no PE. As duas maiores famílias políticas somadas, Partido Popular Europeu e socialistas, não conseguem alcançar uma maioria absoluta. A Aliança de Liberais e Democratas Europeus, em transformação e agora aliada a Emmanuel Macron, ultrapassa os 100 representantes e ressurge como a terceira força política no PE. Os Verdes obtiveram resultados muitos expressivos em vários países, com destaque para o segundo lugar na Alemanha, o que lhes confere não apenas o estatuto de quarta família política no PE e, tão ou mais importante, a expectativa de grande influência na agenda política dos próximos tempos. Esta nova configuração e correlação de forças no PE vai obrigar a um maior esforço para que se alcancem as maiorias necessárias. Algo que até pode ser positivo numa entidade política com as caraterísticas da UE, em que a diversidade e a necessidade de entendimentos são constitutivas.

As consequências desta redistribuição de poder são já visíveis nas negociações que se iniciaram para os principais lugares de topo das instituições europeias, em particular para a escolha do próximo Presidente da Comissão Europeia (CE). Apesar de em 2014 a escolha de Jean-Claude Juncker ter sido marcada pela apresentação prévia de candidatos ao lugar por parte dos principais partidos políticos europeus, o que constituiu um novo processo político que ficou conhecido pelo método de ‘Spitzenkandidaten’, as condições em 2019 são diferentes e ainda não é certo qual será o desfecho. É certo que em diversas ocasiões, inclusive através de uma resolução em fevereiro de 2018 e a última dos quais pela voz do seu Presidente logo após as eleições, o PE já «avisou» o Conselho Europeu que não elegerá um nome que esteja à margem dos candidatos apresentados antes das eleições. Mas também é um facto que, embora os tratados estabeleçam que o Presidente da CE tem de ser eleito pela maioria do PE, é ao Conselho Europeu que compete indicar, por maioria qualificada, o nome a submeter ao escrutínio do PE.

Estamos assim perante uma situação de equilíbrio e de tensão entre uma instituição europeia intergovernamental, o Conselho Europeu, e uma assembleia supranacional, com representantes eleitos diretamente, o PE. Após o já tradicional jantar e cimeira informal dos chefes de Estado e de Governo dois dias após as eleições, o Presidente do Conselho, Donald Tusk, afirmou que o Conselho Europeu não encara o facto de alguém ter sido ‘Spitzenkandidat’ como uma «incompatibilidade» para ser o nomeado para Presidente da Comissão Europeia. Já em Fevereiro de 2018, e numa resposta, a uma resolução do PE, Tusk tinha referido que esse era um assunto da «bolha» de Bruxelas e que o Conselho Europeu não estava vinculado ao método de ‘Spitzenkandidaten’, nem abdicaria do poder que lhe é conferido pelos tratados.

Tudo isto são sinais reveladores da necessidade de permanentes entendimentos entre os Estados-membros e as diversas instituições da UE. A UE não é um estado nem uma federação. É uma entidade política com elementos híbridos e composta por quase três dezenas democracias, o que a torna verdadeiramente singular. Nasceu para articular políticas, mas tem na diversidade e no carácter democrático dos seus Estados-membros a sua maior riqueza. As eleições de 26 de maio não insuflaram o espectro do ultranacionalismo nem o caminho para a desagregação. Mas a necessidade de equilíbrios e de entendimentos estará sempre presente. É também dessa massa maleável que é feita a história da União Europeia.

 

Nuno Sampaio assina este texto na qualidade de Autor do ensaio “Eleições na União Europeia”,, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.