Em ano de eleições, Portugal parece o “Admirável Mundo Novo”. Quem leu  a obra de Aldous Huxley sabe que é a verdade que trama o sistema, mesmo que a verdade seja o privilégio de poucos. São os elementos dissonantes que funcionam como uma verdadeira falha tectónica. Quando o porta-voz do Estado português, o Governo,  se orgulha do défice mais baixo da democracia e do crescimento mais elevado da década e de outros feitos financeiros do género, eis que o FMI vem revelar esta semana a falha tectónica: temos demasiadas pessoas a ganhar o salário mínimo nacional em Portugal.

Vamos a contas, estas são da Pordata, que começou a fazer as contas à percentagem de pessoas que vivem com o salário mínimo nacional em 2001 e que coligiu dados até 2017. Em 2001, Portugal tinha uma taxa de desemprego de 4%(!) e, da população empregada, a percentagem de pessoas a receber o salário mínimo era, também de 4%. Fast forward para 2017. Tínhamos uma taxa de desemprego de 8,9% e a percentagem de pessoas a receberem o salário mínimo estava próxima dos 22%. Colocado de forma simples: em 16 anos, passámos a ter mais do dobro do desemprego e o número de pessoas a receber o salário mínimo é seis vezes superior.

Poucos números traduzem melhor a economia real do que estes. Todos nos regozijamos com o crescimento do PIB, com o pagamento antecipado da dívida, com os elogios que nos fazem de fora. Mas esta lógica financeira que produz um Excel à prova de bala e de Bruxelas e até dos mercados que tanto nos assustam (e devem assustar), não quer dizer que o país – nós – vivamos melhor.

Pelo contrário. Há mais desemprego e há mais emprego precário em Portugal. Pagamos mais impostos do que nunca. E se na macroeconomia – o Excel – tudo parece encaixar, na microeconomia, na vida dos portugueses, a conversa é outra. Mesmo que a história que nos contam seja boa. Chama-se política. Se tivéssemos seis anos, chamava-se história para adormecer. Com efeito, é adormecidos que estamos.

No espaço de um mês, tivemos em Portugal o FMI a destacar um país em que um quinto da população ativa vive do salário mínimo e, antes, uma OCDE a dizer que a digitalização (inexorável e irreversível) obriga países como Portugal – pobres e vulneráveis (afinal é o que continuamos a ser) – a pensar em sistemas de reforma complementares para quem irá passar uma vida inteira nisto dos salários Uber, dos 600 euros por mês.

Não é papel dos governos, enquanto gestores do Estado, ditar um aumento dos salários para um nível que comporte dignidade, quanto mais qualidade de vida. Mas é papel dos governos terem uma visão estratégica sustentável, algo que falta a Portugal desde 2011, quando a troika nos entrou porta adentro e, antes, quando fomos liderados por um primeiro-ministro em delírio, José Sócrates, que arruinou o que faltava do país.

Diz-se, e normalmente com razão, que o papel da direita é pôr as contas em ordem. A direita seria uma quarta-feira de cinzas a seguir ao Carnaval socialista. Mas o que nos está a faltar é muito mais do que isso. O FMI já disse o que é: um país que suba na cadeia de valor e que possa, por essa via – a única sustentável – remunerar melhor os seus. Falta estratégia, não chega um administrador financeiro. E é sobre isso que gostaria de ouvir falar até às eleições.