O atual enquadramento de Portugal relativamente ao futuro pós-pandemia tem vindo a levantar naturais preocupações, não apenas pela severidade económica e social que pode trazer, mas também pelo tempo prolongado em que se podem manter as restrições de mobilidade – sobretudo se existir uma segunda vaga do vírus que leve a um retrocesso do processo de abertura das economias europeias no ultimo terço do ano – tornando a situação potencialmente desastrosa no que respeita à capacidade do Estado português poder continuar a assegurar apoio a empresas e famílias, mantendo os equilíbrios da sustentabilidade das contas públicas exequíveis.
Com o peso da abertura da economia nacional a atingir um valor significativo (as exportações foram responsáveis por cerca de 44% do PIB no ano passado), e com o Turismo a pesar cerca 19,1% do produto, o país encontra-se numa situação de complexo exercício de equilíbrio. Boa parte da capacidade de recuperar rapidamente a atividade e emprego a nível nacional dependerá do incentivo que vier da União Europeia, sobretudo do Fundo de Recuperação Europeu que se discute este fim de semana.
Resposta europeia começa a ganhar dimensão e credibilidade
Regra geral, as respostas provenientes da União Europeia têm sido tradicionalmente consideradas demasiado lentas, suportadas em reajustamentos de âmbito orçamental (ou seja, ajudas que estavam cabimentadas já para determinado efeito, que depois são realocadas para o mesmo país, embora com outro objetivo) e, por fim, muito assentes na criação de novo endividamento.
Desta feita, e apesar de tardia, a reposta parece estar à altura das exigências. Desde logo porque se trata de “dinheiro novo”, levantado no mercado de uma forma quase mutualizada e especificamente dirigida à crise da pandemia, e que depois, na distribuição aos países, não constitui um mecanismo que releva apenas do formato de dívida. Por fim, está também assente num mecanismo mais coordenado com as demais respostas monetárias, quer do Banco Central Europeu, quer mesmo de todas as outras soluções que já se encontram no terreno.
Com o novo fundo já implementado no terreno, os países da zona euro terão, potencialmente, uma elevada capacidade financeira para a fase da recuperação. No seu total, a resposta europeia à Covid-19, em termos imediatos e com vista à recuperação a partir de 2021, somaria 1,3 biliões de euros em instrumentos globais, incluindo os três mecanismos de curto prazo – linha de crédito do Mecanismo Europeu de Estabilidade, linhas do Banco Europeu de Investimento e SURE para o mercado laboral – com um montante de 540 mil milhões, e o Fundo de Recuperação agora proposto de 750 mil milhões de euros.
A solução permite não só agir numa lógica de curto prazo, mas também em termos de reforma da economia europeia de maneira a permitir o crescimento de longo prazo, através de maiores compromissos com a economia circular, o crescimento sustentável, e a aposta em tecnologia e energias limpas. Mas, sobretudo, assegura que países com piores condições de equilíbrio fiscal, como Portugal, possam ter suporte para revitalizar a sua economia, que dificilmente conseguiriam através das soluções tradicionais de endividamento, minimizando o risco de uma nova crise de dívida soberana.
A delicada anatomia de um milagre luso
Portugal foi um dos países europeus que mais rapidamente anunciou uma resposta ao surto de Covid-19, tendo o Governo implementado as primeiras medidas de contenção a 12 de março, para depois, em 18 de março, anunciar o estado de emergência com mais restrições, incluindo o dever de auto-isolamento, restabelecimento temporário dos controlos nas fronteiras e encerramento de atividades comerciais. Contudo, a estratégia de desconfinamento não tem corrido de feição, e após a reabertura (nomeadamente das fronteiras com Espanha no início de julho) Portugal teve diversos problemas com o controlo da frente sanitária que fizeram com que alguns municípios da área metropolitana de Lisboa tivessem de recuar impondo restrições, como a proibição de ajuntamentos com mais de 10 pessoas e o encerramento dos estabelecimento comerciais às 20h00 (salvo restaurantes).
A nível externo, o fim da perceção de um milagre exemplar português, ficou evidenciado com a exclusão dos nacionais portugueses das primeiras listas de nacionalidades seguras e dispensadas de quarentena de vários países europeus, com destaque para o Reino Unido, que as publicou mais recentemente. Isto afeta a forma como Portugal pode ser percecionado na reabertura do espaço Schengen e, consequentemente, o relançamento da economia e de um dos seus principais sectores, i.e., o turismo.
Esta combinação de fatores cria um cenário difícil para Portugal numa série de frentes. Se estivermos a considerar uma queda de 50% da chegada de turistas em 2020 de que vários observadores falam (e que até poderá ser um cenário otimista), o impacte negativo rondará os 4% a 5% do valor criado em termos de produto. O choque pode afetar ainda mais a economia em geral. Os índices de confiança para as empresas industriais e serviços atingiram níveis mínimos históricos, assim como o dos consumidores, leituras que condicionam as expectativas de consumo e geram um ciclo complexo de contrariar, em que mesmo quem tem poder de comprar se retrai dada a incerteza de expectativas relativamente ao futuro.
Ao mesmo tempo que os sectores mais tradicionais vão sofrendo em virtude da deterioração do consumo nacional, assim como de uma menos impetuosa atividade em sectores exportadores com algum relevo, as recentes intervenções do Estado em empresas como a TAP e a Efacec estão a criar responsabilidades financeiras em termos orçamentais que, a prazo, ficarão a descoberto. Por último, mas não menos importante, o sector financeiro português que ainda está a sarar as feridas da última grande crise, à medida que a fragilidade dos impactes da pandemia se forem fazendo sentir, poderá voltar a ver o seu balanço deteriorar-se em virtude de um potencial aumento do malparado – e eventualmente levarem a novas necessidades de capital.
A oportunidade está na estratégia da Europa
Todas as frentes que têm que ser enfrentadas para evitar uma disrupção do sistema a nível nacional apontam no mesmo sentido, que é o da necessidade de colocar maiores meios para devolver confiança no período pós-pandemia e promover uma reformulação estrutural da economia para o médio prazo.
Apenas com os meios ao dispor dos decisores nacionais, o risco de Portugal ficar numa situação de enorme fragilidade é elevadíssimo, pois os níveis de endividamento público necessários para conter a recessão e revitalizar o tecido empresarial – as empresas estratégicas e as de enorme dimensão – e ainda requalificar combater o desemprego estrutural seriam, também eles, extremamente elevados.
Isto partindo do pressuposto que uma segunda vaga teria baixo impacto na economia nacional, e não seria necessário aumentar as medidas atualmente em vigor para conter os impactes de uma nova crise sanitária na economia e na coesão social. Seria muito complicado manter a disciplina financeira dos últimos anos, exercício que permitiu ao país recuperar a confiança dos investidores internacionais na dívida soberana portuguesa, caso seja necessário voltar a declarar o estado de emergência até ao final do ano.
A oportunidade para Portugal recuperar de forma mais rápida reside por isso na estratégia europeia e, sobretudo, no Fundo de Recuperação. Portugal poderá receber um valor equivalente a 13% do Produto Interno Bruto, ou seja, até 26 mil milhões de euros em financiamento nos próximos cinco anos, sendo que destes, cerca de 15 mil milhões de euros seriam de ‘subvenções’ e não seriam elegíveis para a dívida de Portugal (ou, pelo menos, não inicialmente) o que pode impulsionar significativamente a recuperação económica e ajudar a sustentabilidade da dívida.
A oportunidade reside na possibilidade de o país ter condições para poder levar a cabo uma transição da economia nacional para um ciclo mais sustentável e inovador, dada a enorme componente de incentivos que o programa “Next Generation EU” encerra.
‘Bottoms up’: momentos decisivos. A hora da Europa e de Portugal
Numa situação de complexos equilíbrios, a forma como Portugal encarar o restabelecimento mais rápido de uma certa normalidade dependerá em muito da resposta europeia, sobretudo no que diz respeito ao formato final – aspeto chave para se poder conter a severidade do impacto económico de curto prazo, assim como criar caminho para o crescimento sustentável a médio prazo quer em termos de novos sectores, quer de sustentabilidade das finanças públicas e, consequentemente, de endividamento público e das famílias.
Acima de tudo uma solução que será um sinal de coesão a vários níveis. Desde logo da coesão entre as nações europeias (num mundo cada vez mais protecionista), e que é uma oportunidade para a União Europeia voltar a posicionar-se geopoliticamente como uma potência comercial em bloco. E também no sentido de abrir a porta a uma nova coesão social, com os cidadãos dos seus países, que permita que os europeus se sintam menos eurocéticos e mais confiantes num futuro inclusivo e despido de nacionalismos e de todo o tipo de extremismos.
Esta é a hora da Europa, mas é também a hora de Portugal, que deve aproveitar para proceder a uma importante transformação económica e social.