Há uma ilustração do grande Hieronymus Bosch em que a floresta surge representada com ouvidos e o campo diante dela com olhos. Aparecem também pássaros agitados e um mocho quieto, pousado no interior aberto do tronco velho de uma árvore, como a dividirem o trabalho da sabedoria serena. Nesta representação, a floresta pede a escuta como os campos a visão. E a escuta pede disponibilidade para ouvir, uma certa disposição expectante que precede e espera pelo que virá, incerto. Os olhos também precisam de disponibilidade para ver além do que só verificam e, nesse sentido, também podem estar à escuta, querendo.

Não são os sentidos, mas como nos relacionamos com eles que faz diferença. Ainda que nos habituemos, por tradição e educação, a pensar a visão como escrutinadora e a escuta como receptora, ambas podem ser como a outra. Talvez passear na floresta nos desabitue desses hábitos que trazemos.

Mas porquê a floresta? Que tem ela que suspende e inutiliza o olhar que só verifica o que já conhece? Os seus caminhos são muitos e não é de esperar entre eles um padrão que permita antecipar as inflexões.

A floresta não deixa o pensamento substituí-la pela abstracção de um plano que dela fizéssemos. Por isso, quando representam a floresta, os mapas tendem a deixar de desenhar caminhos, como seria sua função. Eles existem, mas o seu desenho não é mapeável. Podem deixar de existir se não forem limpos, podem desviar-se de um ano para o outro consoante o desenvolvimento da floresta, podem também perdurar séculos, às vezes trazendo vestígios de caminhos antigos, ruínas do que por ali passou. Mas os mapas, além de assinalarem os rios e ribeiros que correm nas florestas, quase sempre preferem pintar o resto de verde e pouco mais. É o consentâneo com a realidade.

Os caminhos ou não são conhecidos, cada passo um momento de escuta do que o seguinte vai encontrar, ou são conhecidos, mas só por quem os caminha, reconhecidos no passo seguinte da mesma maneira como se vai recordando as notas de uma música ou a letra de uma canção que se conhece bem de tantas vezes a ter cantado. A antecipação é apenas a dos instantes seguintes. Por vezes, anda-se aos círculos como quem não consegue sair do refrão, cantarolando ou assobiando. Pã ama a música, traz a sua flauta a tiracolo, que tocada conta o caminho. Esse é o pequeno GPS musical de Pã, que vai deixando encontrar, mas para logo deixar de o permitir. Por isso, na floresta há que não parar e seguir caminho.

O pensamento do panóptico, que tudo vê, ou do globo, que tudo abarca, não tem lugar na floresta. Mas tem de haver um pensamento possível da floresta. Deste encantamento da escuta.

Uma floresta de pensamentos

Também a cabeça das pessoas pode ser uma floresta de pensamentos, um emaranhado de pensamentos que não se deixam levar por nenhum pensar que os observasse com espírito de método. O que cada pessoa pensa pode ser uma floresta para outra pessoa, encantando, como se entre uns e outros permanecesse um véu. Apenas ver através do que não deixa ver tudo. Como um escutar visual. E disto pode imaginar-se mapas mágicos, que não são bem mapas que funcionem, mas evocação.

Há uma lição da floresta para todos os lugares que habitamos. Melhor do que pensar a floresta como um habitar menos que apenas se visita, importaria talvez pensar o habitar como uma visita. Estamos melhor com as coisas, os lugares, os outros, até nós próprios, se guardarmos uma estranheza. Não das coisas face a nós, mas nós, estranhos face às coisas, os outros, nós próprios, tudo lugares.  Sempre visitantes, mesmo onde vivamos desde ou para sempre. Assim, estamos e não afastamos.

O fascinante na floresta é ser vivida sem ser habitada. Nela, estamos de passagem. Até com a luz é assim, cuja passagem pela floresta é negociada com a folhagem e a brisa. Não convém demorarmo-nos nela, tanto mais se a luz se vai esvanecendo. Habita-se nas orlas, na transição para o mundo habitado, dos campos, das aldeias e das cidades.

São escassos os habitantes da floresta. Quem cuida dela, o guarda-florestal, quem vive dela, o lenhador por exemplo. E, no passado, também a curandeira que conhecia as ervas e o que fazer com elas. Ou mesmo quem não pertence bem à comunidade, as bruxas da floresta, assim como as pintou Paul Klee. As bruxas e a floresta têm uma relação íntima. São elas que a conhecem e sabem convocar os seus poderes.

As três bruxas de Macbeth metamorfoseiam-se na versão de Akira Kurosawa (“O Trono de Sangue”) em espírito da floresta. Habitam-se também clareiras luminosas, naturais ou abertas, ou algo intermédio, a alargar um começo propício. As malocas dos índios Yanomami rompem em círculos de comunidade a densidade da floresta amazónica. E a clareira do ser, de que falava Martin Heidegger, a partir da sua cabana na floresta negra, é uma espécie de metáfora para exprimir a maneira como ele entendia a nossa abertura ao mundo, sítio de um desvelamento, que é a tal luz de passagem, a ir como veio.

O dentro e fora da floresta

Mas a floresta tem muitos perigos. Estando fora do controlo do olhar, da certeza do mapa, o encontro traz um suplemento grande de imprevisibilidade, risco inesperado. A palavra “pânico” significa, na sua origem, o que pertence a Pã. Sobretudo, com o cair da noite, as sombras ganham formas e as formas sombras. A linearidade suspende-se, o pequeno sulco pode afinal ser o começo de figuras enormes, a aparição do monstro, ou simplesmente da sua compleição, torna-se iminente.

“Entre o terror e a noite caminhei”, começa assim Sophia o poema “A floresta”. Há troncos que parecem conter a potência de todo o imaginário de formas, que compelem o andar na sua direcção, como um mergulho hipnótico no perigo. O rumor da folhagem diz coisas que somos capazes de ouvir mas não somos capazes de dizer. A voz não é nossa. E escuta-se o rumorejar da floresta inteira antes de perceber qual habitante seu se manifestou.

Tudo o que se ouve é também comunicação interna, das partes da floresta, a falarem umas para as outras, ecossistema que é comunidade. Aldo Leopold concretizou este outro sentido de comunidade assim: “A ética da terra (land ethics) simplesmente alarga os limites da comunidade para incluir os solos, a água, as plantas e os animais, ou colectivamente a terra”. A floresta é também uma comunidade biótica, mas que guarda a distância para a comunidade humana.

Na sua origem, a palavra “floresta”, que chegou à nossa língua por via do francês, refere o que fica fora do domínio da comunidade, além do qual só o rei tinha direitos. Do latim “foris”, “forestis”, como a palavra “forasteiro”. Na verdade, é nela que subsiste a ideia de um lugar que é dentro. Nas orlas, onde aparecem as primeiras casas e habitantes, a floresta encontra o seu lado de fora. A floresta tem isso: retira o monopólio do “dentro” ao humano.

Na língua portuguesa, algo singularmente, os usos da palavra interpuseram um “l” onde cabia a possibilidade de ler também flor. Equívoco ou transgressão, o resultado é podermos ressoar o florir quando dizemos “florestar”. Não há flor sem âmago, que atrai borboletas, beija-flores, abelhas. Desgraçadamente, a felicidade das palavras não foi correspondida pela das práticas.

Cuidar da floresta é intergeracional

Deve haver poucos lugares governados democraticamente onde a floresta tenha sido mais empobrecida. Muito provavelmente, a causa disso está em apenas uma fracção residual da floresta em Portugal ser propriedade pública.

Na primeira fúria privatizadora do liberalismo do século XIX, o Reino vendeu em hasta pública as propriedades das ordens religiosas e da nobreza de que se assenhoreara. Na sua esmagadora parte, a floresta nacional é hoje propriedade privada de uma população pobre, sem grandes margens para investir a longo prazo, até porque, quase sempre, são pequenas propriedades.

Assim, privada e fragmentada, posta a render, como um burro estafado, a floresta portuguesa tem muito mais de campo arborizado do que de floresta. Não é um fora que abriga um dentro mágico, mas uma continuação por outros terrenos do dentro cada vez mais árido da vida humana. Nesta infeliz ambiguidade, se não for intensamente explorada, em monoculturas de rápido retorno, a floresta é deixada para ali, a acumular mato. Ambas as condições, explorada em monocultura ou abandonada, estão igualmente desprovidas de sentido de cuidar, convergindo para as mais convidativas condições dos grandes incêndios.

O cuidar da floresta é intergeracional, planta-se para os filhos e para os netos, investimento de sentido, tanto ou mais do que de racionalidade económica. Mas o estado tem outro à vontade com o tempo longo. Há árvores muito mais velhas do que a história toda do país.

Um texto magnífico de Vilém Flusser identifica quatro modos de caminhar na floresta: imerso nos pensamentos, a observar a floresta, a desfrutá-la, a procurar o caminho de volta.  Cada um traz uma incompletude que pede um bastão, ou um bordão, para fazer caminho.

Estar imerso nos pensamentos é como a realidade da floresta negada. No entanto, estar assim imerso é caminhar em afinidade com a floresta. Afinal, ela mesma é ensimesmada. Observando a floresta objectiva-se a sua realidade, mas quem observa tende à ausência de si, concentrado no que faz. A desfrutá-la, a floresta deixa o sujeito à mercê das experiências. E a procura do caminho de volta realça uma certa urgência que desloca a atenção da teoria para a prática.

O título do ensaio de Flusser pode traduzir-se tanto por bastões como por bordões. Sem dúvida, a segunda é mais rica. Também na música pode haver bordões, que repetem e servem de apoio à melodia. E como os caminhantes levam os seus bordões, na linguagem são precioso auxílio para ganhar tempo, olhar em volta e adentrar no emaranhado dos pensamentos, à escuta.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.