A invasão russa da Ucrânia constitui o maior conflito bélico europeu desde o final da Segunda Guerra Mundial. As suas consequências globais estão à vista de todos. Olho sempre para a História para tentar compreender e antecipar cenários, mas a verdade é que se é possível observar algumas continuidades, também é possível identificar diferenças substanciais em relação a conflitos anteriores.

As continuidades são evidentes. A Federação Russa é uma típica potência revisionista, que pretende reverter alguma das consequências geopolíticas mais penalizadoras do colapso da União Soviética (sucedâneo histórico do Império Russo) na “Guerra-Fria”. A perda do controlo da Ucrânia e dos seus imensos recursos naturais constitui o retrocesso territorial mais grave da Rússia desde “Pedro, o Grande”.

Putin utilizou a estafada questão das minorias nacionais, supostamente oprimidas no interior de outros Estados, para justificar a intervenção militar e a subsequente anexação territorial. A argumentação é, em tudo, idêntica à utilizada no âmbito da desagregação do Império Austro-Húngaro ou até por Hitler em relação à anexação dos Sudetas (região de maioria alemã, que integrava a Checoslováquia antes da Segunda Guerra Mundial).

Foi também o argumento que justificou a intervenção Ocidental em defesa da independência do Kosovo. A Crimeia e o Donbass constituem regiões habitadas, maioritariamente, por populações de língua russa. A Crimeia conta, também, com uma maioria etnicamente russa.  Nada de novo por aqui.

O dilema é idêntico ao que as potências Ocidentais tiveram de enfrentar, nos anos trinta do século passado, em relação a Hitler. O ditador alemão anexou, de forma sucessiva, a Áustria, os Sudetas, a Boémia-Morávia e o território de Memel. A única forma de parar as anexações territoriais de Hitler – todas justificadas pela proteção das minorais alemãs – foi a guerra, após a invasão da Polónia em setembro de 1939.

Putin ficará saciado após a anexação do Donbass e do corredor de ligação à Crimeia? As potências Ocidentais temem que a voracidade de Putin não tenha limites, tal como já sucedeu no passado com outros “conquistadores”, como Napoleão ou Hitler. Só a derrota militar os parou.

Outra questão relevante, no âmbito da qual é possível realizar uma comparação com o sucedido na Segunda Guerra Mundial, é a questão da mobilização dos recursos para a guerra. Albert Speer, ex-ministro do Armamento da Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, descreveu, no livro “Por dentro do Terceiro Reich”, o seu percurso político junto de Hitler, desde o início dos anos trinta até ao final da Segunda Guerra Mundial.

Speer realizou um conjunto de observações, que considero relevantes. Reconheceu, por exemplo, que a grande maioria da população alemã, massacrada pelas enormes perdas na Primeira Guerra Mundial, nunca revelou qualquer entusiasmo pela guerra, apesar das espetaculares vitórias iniciais da máquina de guerra nazi.

Esse sentimento generalizado e a preocupação em manter bons níveis de satisfação junto da população, levou o regime a nunca utilizar, em grande escala, a mão-de-obra feminina e a adiar a tomada de decisões impopulares em termos de racionamento e de mobilização total de meios. Isso, concluiu Speer, implicou a perda “da guerra de produção bélica” por parte da Alemanha e o consequente esmagamento dos exércitos alemães nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial.

Vejo algumas semelhanças entre esta situação e a que a Rússia de Putin enfrenta na atualidade. O regime russo insiste, junto da população russa, na versão da intervenção especial na Ucrânia e continua sem mobilizar, na sua totalidade, os seus imensos recursos. Do lado ucraniano, pelo contrário, mobiliza-se a quase totalidade dos recursos materiais e humanos, a que se junta o apoio militar, político e económico do chamado “Ocidente Alargado”, em especial dos Estados Unidos.

Este estado de coisas está a equilibrar, de forma progressiva, o conjunto de meios de que dispõem os dois adversários, embora a superioridade russa continue a ser bastante significativa.

O que leva a Rússia a não mobilizar a totalidade dos seus recursos e a lançar uma “guerra total”? Estou convencido de que Putin enfrenta o mesmo dilema que Hitler. A maioria da população russa apoia a intervenção militar em curso, embora sem muito entusiasmo, mas Putin sabe que se a guerra exigir grandes sacrifícios à população, esse apoio relutante tenderá a desaparecer.

Mas terminam aqui as semelhanças. Nesta crise internacional, ao contrário do que sucedeu nos dois grandes conflitos mundiais – e com exceção do que agora se chama o “Ocidente alargado” -, o resto do mundo não está a acompanhar as decisões ocidentais em relação ao envolvimento militar (através da entrega de armamento) e às sanções internacionais à Rússia. É o caso da Índia, da China, do Brasil e de muitos outros países não ocidentais. O resto do mundo parece estar reticente em envolver-se em guerras provocadas, em primeira instância, pelas potências europeias, em consequência das suas eternas questões nacionais e étnicas.

A outra questão essencial – e diferente – é a nuclear. A Rússia, tal como qualquer outra grande potência nuclear, não pode ser invadida ou completamente derrotada do ponto de vista militar, tal como sucedeu com a Alemanha ou o Japão na Segunda Guerra Mundial. Em circunstâncias desesperadas, a Federação Russa ativará, certamente, o seu potencial nuclear para evitar uma derrota militar de grande dimensão.