O dia de ontem brindou-me, logo de manhã, com um artigo que me enojou. Estava até bastante pronto a ignorá-lo e abordar a trapalhada na Caixa, mas o alcance que me pareceu ter a opinião desta ilustre médica, juntamente com o embalo anti-machista com que venho da quinzena passada, impediram-me de o fazer.
Antes de mais, dois pontos prévios: primeiro, esclarecem-se já os defensores acérrimos da “liberdade de expressão” – esse conceito tão deturpado e adulterado ultimamente, normalmente aliado a uma noção infantil de “politicamente correcto” – que, tal como a autora teve a liberdade de expor ao país a sua estupidez e obsoletismo, terá agora de lidar com a liberdade da sua audiência em lhe responder, discordar dela e, aplicável neste caso, lhe mostrar porque está ela errada.
Além disso, e passando para o segundo ponto prévio, assumo-me, tal como a autora, contra a Lei da Paridade e o sistema de quotas – mas, claramente, os motivos subjacentes serão diferentes, porque se esta Sra. Dra. me parece contra as quotas para que as mulheres tenham mais tempo para as lides domésticas e não se atingirem as “preocupantes” percentagens femininas de médicas e advogadas (para as quais esta criatura contribui), no meu caso a razão prende-se meramente com mérito, porque acho que nenhum cargo deve ser ocupado por um indivíduo em função de género, etnia, orientação sexual ou idade acima da sua competência para esse trabalho.
O que muitos não compreenderão é que as quotas são uma maneira imperfeita de corrigir um outcome indesejável, o de sub-representação das mulheres em cargos de chefia, que é o resultado de um sistema viciado, um que sistematicamente favorece e facilita a evolução dos homens – basicamente, eu seria a favor de uma rectificação do processo em vez de uma correcção forçada do resultado, o que não coincide com a visão de quem se opõe às quotas por achar que não há problema nenhum a abordar. É um pouco como o disclaimer no fim dos nossos artigos: apesar de ambos escrevermos com a antiga ortografia, eu não ouso ter a superioridade moral de lhe chamar “o Português correcto” (especialmente se separasse sujeitos de predicados com vírgulas).
É fácil constatar que o texto desta senhora se pauta por generalizações infundadas e idiotas. Desde o “gosta de se arranjar e sentir bonita” (suponho que, por exemplo, a moda de barbeiros que surgiu seja, precisamente, para estas mulheres que gostam de ter uma barba arranjada e bonita), passando pelo “gosta de ver ordem à sua volta” (a autora nunca deve ter partilhado a casa com estudantes do sexo feminino) até ao “é o porto de abrigo das crianças” (e os melhores exemplos são a mãe da Joana Cipriano, da Maddie McCann ou uma das que se mandou à água com os filhos), o difícil é escolher qual a que teria mais piada caso se tratasse de um número humorístico. Mas eu delirei mesmo foi com o argumento do “gosta de se sentir útil” como forma de justificar que o homem ganhe mais, porque o sucesso da mulher é atingido através do homem com quem casou.
Uma pergunta à autora, que, aparentemente, é médica e, como tal, esteve, pelo menos, seis anos (e, se tiver uma especialização, terão sido oito) a perder tempo na faculdade, a queimar neurónios e horas de sono e a gastar dinheiro em propinas: se o seu sucesso será determinado pelo do seu marido, não teria sido tempo mais bem empregue se fosse ao ginásio? Ou ao cabeleireiro? Ou a fazer uns bolinhos e pratos de carne para todos os machos à sua volta se deliciarem com o cheiro a comidinha feita e pouca massa crítica? Ou será que esta última parte cai já no domínio do pecado luxurioso?
Porque aqui reside o grande problema com a mentalidade hipócrita e tacanha desta malta: se a minha amiga quer viver como a sombra do seu homem, força. Ninguém a obriga a ser livre, a decidir a sua vida, o que vestir, o que comer, onde ir de férias ou como educar os seus filhos. No Estado Novo, era esta a mulher ideal e bem-comportada: caladinha e submissa – e quem quiser continuar a viver assim, força. Mas não polua a luta de quem, tendo a possibilidade de decidir, escolhe ser livre, independente, não se subjugar à outra metade da relação ou viver dos seus sucessos, partilhando-os com quem quer mas não se projectando neles. Acima de tudo, não mine a luta de quem ainda só almeja poder decidir, porque a sua voz não é ouvida.
Pode ler-se, em mais uma publicação carregada de xenofobia (pouco) disfarçada com esta ferramenta populista que é o whataboutism, que “a Igreja a todos acolhe e convida os cristãos a não julgarem ninguém”; e é precisamente a malta que partilha estes saberes que também escreve que o feminismo “objectifica a mulher, enquanto presa para sexo fácil e espaço de diversão” e que “promove paradas onde se expõe o corpo de forma grosseira e agreste à visão”. Ah sim!, claro, o que dignifica a mulher é relegá-la para assistente do marido, e uma mulher bem-sucedida é-o porque “casou bem”.
Até aqui se vê como o mundo é mais difícil para as mulheres: um homem que não seja bem-sucedido no seu emprego acaba despedido; uma mulher que não seja bem-sucedida no seu empr… perdão, casamento, acaba divorciada ou, ainda melhor, como mais uma estatística nas contas de violência doméstica. Minha cara, com todo o meu cavalheirismo e pouco apreço pelo politicamente correcto, digo-lhe: ganhe juízo. Ou arranje um homem que lho dê.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.