Recuo à primeira década de 2000 e recordo-me como a máscara de Guy Fawkes começou a marcar presença em vários protestos populares antigovernamentais que então eclodiram no mundo ocidental, na sequência da recessão de 2008. A banda desenhada de Alan Moore “V for Vendetta”, e subsequente adaptação cinematográfica de 2005, ajudou a popularizar a figura icónica de um anarquista revolucionário, V, que se escondia por detrás da máscara de Guy Fawkes, e que viria a inspirar grupos como Occupy e Anonymous.

Volvidas duas décadas, os protestos antigovernamentais não mostram sinais de abrandar, muito pelo contrário. As imagens dos noticiários continuam a mostrar-nos ruas a fervilhar de revolta contra o fracasso de governos reféns de políticas neoliberais e que têm imposto medidas de austeridade que se tornaram o motor de uma raiva justificada por piores condições de vida. Em alguns países, a democracia não é sequer uma realidade e longa tem sido a luta contra oligarquias financeiras.

Não surpreende que as máscaras de Dalí popularizadas pela série televisiva “La casa de Papel”, sobre um bando de ladrões que rouba bancos, viessem também a ecoar a insatisfação popular dos cidadãos que tanto perderam para salvar bancos dos seus erros financeiros.

Enquanto no início do mês, Hong Kong proibiu manifestantes de usarem máscaras, vedando-lhes a proteção do anonimato, nas manifestações mais recentes que irromperam no Líbano e no Chile é a iconografia do Joker que tem surgido nas manifestações. O filme “Joker” de Todd Phillips, que estreou recentemente em Portugal, soube como poucos pegar numa figura marginalizada e destruída como Arthur Fleck e torná-lo no símbolo involuntário de todos os que sentem espezinhados por um sistema selvático, que tem aprofundado o fosso entre ricos e pobres.

As manifestações que têm eclodido um por todo o mundo – em alguns locais com lamentável recurso a violência – relevam essencialmente de motivos políticos e económicos. Por um lado, novos impostos e aumento do custo de vida em sociedades já de si esmagadas pela corrupção, por outro, processos políticos específicos como os que têm lugar em Hong Kong e na Catalunha, que lutam respetivamente por autonomia e independência.

Poderão estas manifestações isoladas tornar-se um movimento global a uma só voz perante a incapacidade da liderança política em defender os interesses públicos, a qual muitas vezes cede à obsessão de privilegiar um mercado cada vez mais desregulado e que nada fará para trazer justiça social ou travar as alterações climáticas? Sabemos que é uma questão de tempo até irromper uma nova crise financeira global que irá afetar principalmente os mais desfavorecidos.

Caminhamos para uma rutura social que poderá ter um impacto profundo nas próximas décadas do século XXI. Essa rutura está muito mais próxima do que julgamos e continuar a ignorá-la terá consequências desastrosas. Urge escutar as vozes daqueles que se sentem abandonados e injustiçados, para que deixem de se esconder atrás das máscaras dos oprimidos, revolucionários e resistentes.