“O que é a cidade, senão os seus habitantes? As pessoas são na realidade a cidade” – Coriolano, Shakespeare 

Existe uma espécie de ciclo que as cidades por todo o mundo atravessam e ao qual Portugal não está isento, e que está associado ao impasse de interesses de investimento. Com uma elevada dependência de fundos governamentais ou europeus, sempre incertos, ou à deriva de projetos nacionais, as elevadas restrições do financiamento local tornam muitas vezes inviável a concretização de investimentos estruturantes. A isto junta-se uma crise que vai mais além das estruturas físicas, e atinge novos problemas sociais da sociedade moderna, como é o caso da gestão do impacte da automação sobre o emprego, onde as comunidades podem ter um papel relevante na formação e readaptação dos cidadãos.

Esta espécie de asfixia afeta sobretudo cidades menos centrais – onde existem também maiores desafios para as empresas que lá estão a operar – e exigem uma capacidade de resposta por parte dos decisores locais. Afinal, as cidades são significativos percussores de crescimento, e a forma como conseguem reter habitantes e contrariar as dificuldades de atração de investimento público pode ser decisiva para se tornarem resilientes e imunes aos ciclos de disrupção da sociedade. Ou seja, uma nova geração de cidades-estado.

A gestão pública do património começa na criação de conceitos sobre ativos económicos e humanos

O que leva muitas vezes cidades a conseguirem desenvolver-se, enquanto outras se debatem com dificuldades?  O segredo da cidade com sucesso passa muito pela criação de conceitos simples e objetivos de gestão de ativos, assim como da criação de regras de governança sobre a estratégia pública para gerir de forma eficiente esses ativos, que não são apenas os financeiros ou imobiliários, mas também os de caráter humano e social.

Adicionalmente, é preciso ter capacidade para entender e antecipar as oportunidades que se deparam e que atualmente são amiúde geradas pela revolução digital – e que poderão permitir uma significativa poupança, por exemplo, em termos de processos administrativos, mas também no sector educativo e da mobilidade.

Contudo, muitas destas tecnologias ainda não estão numa fase de desenvolvimento mais maduro. Importa, pois, para além de criar as regras (ou governança), e os veículos de gestão dos ativos (reais, humanos e financeiros), profissionalizar a gestão deste novo ecossistema, separando um pouco as águas entre decisores políticos e gestores de ativos públicos locais, não no sentido de criar um novo poder, mas de conferir uma visão técnica e sistematizada na gestão pública local.

O ativo humano que pode ser gerido de forma a reter e qualificar a população

Como referi anteriormente, os habitantes de uma cidade são um ativo. Não se pode tratar apenas de gerir de forma mais eficiente as finanças ou o imobiliário públicos. Uma autarquia que entregue um robusto ecossistema social e humano pode retirar benefícios importantes a médio prazo.

Por exemplo, numa altura em que as escolas estão a passar para a gestão das autarquias, criar um enquadramento local educativo que ajude a evitar o abandono escolar (e que seja mais concreta que os atuais formatos que muitas vezes são apenas paliativos para combater estatísticas) e que se dirija à melhoria da qualidade da educação, pode de facto criar valor para as cidades. Perceber e incentivar o incremento das competências e respostas sociais é uma variável de longo prazo importante para reter capital humano valioso e sustentável para as cidades.

Neste sentido, as novas cidades-estado devem procurar criar respostas sociais e normas complementares locais que ajudem a dar respostas adicionais na área da educação e da defesa da requalificação do emprego, e no campo da responsabilidade social, criando respostas e interação entre os vários agentes económicos locais (os stakeholders da cidade). A gestão destes ativos sociais é muitas vezes de reposta menos imediata, mas crucial para reter e consolidar a médio prazo a estrutura social da autarquia, conferindo uma identidade à cidade.

Por outro lado, a gestão do ecossistema social ajuda à gestão dos ativos de capital humano, onde o enfoque deve ser dirigido a tudo o que pode ser feito para melhorar a qualidade do conhecimento e competências dos habitantes, e ajudá-los a progredir e requalificar-se nas suas profissões (por exemplo em áreas onde possam existir desafios disruptivos, gerados pela automação).

Adicionalmente, criar soluções locais para ajudar as escolas a oferecer melhor qualidade de ensino – e que pode passar por criar ligações entre competências base necessárias dos empregadores locais, e também gerar interações entre empresas e tecido escolar no âmbito de um ecossistema promovido pela autarquia.

Organização e gestão do parque imobiliário público como resposta financeira

As cidades que conseguem maior grau de autonomia financeira e dessa forma maior capacidade de investimento, são as que conseguem colocar o seu balanço de património (imobiliário sobretudo) a gerar receita e valor para a cidade. Muitas autarquias que souberam olhar de forma estrutural e séria para o seu património público, e trabalhá-lo de forma profissional, conseguiram transformar a face mais visível das cidades – e também tornar-se economicamente mais atrativas para investir. O objetivo de extrair valor passa por construir valor de relações de investimento de médio prazo e que devem estar estruturadas em alguns princípios simplificados.

Em primeiro lugar, conhecer o balanço de ativos e dar-lhe visibilidade com transparência e qualidade de informação. A cidade deve publicar um relatório regular organizado e dedicado sobre os ativos que tem em carteira e respetivas rentabilidades que existem atualmente, assim como manter atualizadas as avaliações dos mesmos ativos. Isto permite criar perceção publica por parte das populações e criar os necessários engajamentos e apoios junto da comunidade nas fases de angariação ou de promoção comercial dos ativos detidos – providenciando ainda uma maior transparência relativamente ao valor concreto das propriedades e participações locais.

O segundo princípio é o de permitir uma gestão mais profissional dos ativos e projetos das cidades. Atualmente, a qualidade da gestão da carteira de projetos e ativos públicos encontra-se demasiado dependente das melhores ou piores qualidades inatas dos políticos eleitos. Uma gestão mais sistemática e profissional, criando equilíbrio entre gestão política e gestão técnica de projetos e de ativos, pode representar a diferença para uma cidade e conferir maior transparência em termos de governança do interesse público.

Os procedimentos passam por separar logo à partida os ativos que as autarquias detêm e que são financiados por impostos porque servem um propósito de serviço público (escolas, águas, transportes ou estradas locais, etc.), e os ativos que são de propósito comercial, ou seja, que têm capacidade para gerar receita, ou melhor receita, se forem geridos e desenvolvidos de forma profissionalizada. Dentro dos ativos comerciais, podem estar os que detêm um fim mais operacional (alugados a serviços como distribuição de eletricidade ou correios), e os que são ativos reais, como edifícios e terrenos públicos.

Por fim, é importante que as autarquias consigam envolver os cidadãos no investimento público e de reabilitação da cidade. Isto passa pela criação de sinergias entre todos os agentes interessados (ou stakeholders) não apenas nas intervenções puramente económicas, mas também nas vertentes da gestão dos ecossistemas sociais e do capital humano. Desde os simples contribuintes e proprietários dos pequenos negócios, aos empresários, e agentes de elevada dimensão institucional, todos podem fazer parte de uma rede em favor da comunidade local, e do investimento nos ecossistemas imobiliário e financeiro, social e humano.

‘Bottoms up’: as cidades podem ser mais solidárias e autónomas

Muitas das soluções para o atual dilema de investimento das autarquias podem ter por base uma melhor sistematização e profissionalização da gestão dos seus ativos. Mas estes ativos não são apenas financeiros e imobiliários – onde uma maior despolitização da gestão é criadora de valor e de maior transparência. São também a forma como os seus stakeholders conseguem interagir para criar condições de retenção de capital humano e proteção social adicional e dedicada aos problemas específicos locais. No final, maior sinergia e sistematização pode ser a chave para garantir melhor qualidade de vida e maior resiliência para os habitantes, reduzindo a dependência política dos interesses centrais ou dos ciclos económicos.