Quando se trata de abuso sexual, de assédio comprovado, de menores molestados, nenhum perpetrador deve ser poupado, independentemente da posição social, económica ou política que ocupe.

Diplomatas, políticos, empresários, banqueiros, clérigos, artistas, escriturários, operários, desempregados, médicos, professores, brancos, pretos, amarelos, vermelhos, homens ou mulheres – ninguém pode estar acima da lei. Nem abaixo. Nestes casos, tudo deve ser feito para proteger e reparar a vítima. A vítima, e o seu superior interesse, deverá sempre ser o centro de qualquer processo.

Cada caso confirmado e provado de abuso por parte de membros da Igreja assume uma acrescida gravidade, pelo contraste entre a acção e a missão, por ser precisamente antítese de tudo o que é Igreja. É excepção, perversão e, obviamente, crime. A Igreja é ferida no seu âmago por cada um dos seus que prevarica, que molesta, que assedia, que ofende. Não é politicamente correcto dizê-lo, mas quem dedica tempo, conhecimento e fé a estas questões, sabe que este é um dos exemplos acabados da obra do diabo. Nada há de Igreja aqui. A Igreja estará sempre com toda e cada uma das vítimas, destas ou de outras perseguições ou abusos. Não compreender isto é não compreender nada.

Se tomarmos, por exemplo, o caso dos professores, onde provavelmente acontecem muitos mais casos de assédio e de abuso, o Estado não assume o papel determinante e directo de condenação do infractor e de proteção e reparação da vítima. O caso Casa Pia foi aquilo que todos recordamos, mas em quantas escolas do país haverá casos abafados, mal contados e mal resolvidos? Em quantas instituições do Estado haverá assédio? E no privado? Nas empresas, nos orgãos de comunicação social, por exemplo, não haverá assédio, abuso?

A linha aberta que o Observador criou para instigar a denúncia de supostos casos de abuso ou assédio na Igreja é uma iniciativa tão desonesta quanto perigosa. Cria deliberadamente um anátema e uma suspeita sobre um grupo concreto da sociedade e uma das suas mais importantes instituições.

É sabido, e o Observador não o ignora, que estas hotlines estimulam as fantasias e delírios de muita gente perturbada, para além de amplificar o vitupério de todos os militantes do ódio à Igreja. Nenhum clérigo deverá estar isento de julgamento em caso de suspeita fundada, mas ninguém pode ser automaticamente suspeito por ser clérigo. Este último pressuposto é de uma gravidade sem precedentes.

O Observador trocou o jornalismo de investigação pelo estímulo da delação. Tenho apreço e respeito pela carreira de José Manuel Fernandes. Tinha as melhores expectativas quanto ao percurso do Observador. Esta indignidade deixa-me tão perplexo quanto decepcionado. Obviamente, o Observador quis dar ares de “Boston Globe”, mas fez mal. Faz ainda pior quando comparamos a metodologia e fundamento do trabalho importante que o “Boston Globe” levou a cabo, com a sanha persecutória e delatória que o Observador empreendeu.

E os outros tipos de abuso e assédio? Serão menos graves? Não merecerão denúncia? Ajudará isto a globalidade das vítimas? Valerá a aberta tentativa de perseguição à Igreja a secundarização de uma preocupante infinidade de vítimas, obviamente, a maioria?

O primeiro ambiente de abuso é infelizmente a família. Vamos atacar todas as familias e estimular idiscriminadamente a delação de pais, tutores, tios, avós? Alguém tem ideia de onde poderão acabar estas derivas de histeria onde mais se exige seriedade, sensibilidade e responsabilidade?  Vamos deixar de confiar na Igreja, na família, na escola, no Estado, na sociedade em geral? Vamos trocar a regra pela excepção? Restará apenas o caos.

A maravilhosa resiliência

A começar a minha terceira semana no Brasil pós-eleições, confirmo a minha enorme admiração por este povo extraordinário. Aos meus olhos, de gringo descrente, pouco ou nada mudo da realidade material, mas afinal tudo mudou. O factor esperança substituiu o factor desespero, e isso faz toda a diferença.

O empresário, o taxista, o empregado do boteco, o médico, o quadro de classe média, a faxineira, não querem saber do meu preconceito com Bolsonaro. Respondem-me invariavelmente que não tive de viver as atrocidades do pêtismo de Lula e Dilma, que voltaram a ter gasolina nos postos e comida nas lojas para comprar, que, como diz o samba, a coisa vai melhorar.

Acredito, pelo que vejo, converso e sinto, que a vitória de Bolsonaro hoje seria ainda mais expressiva. Continuo sem conseguir gostar do sujeito, mas estou feliz com a esperança do Povo, com o ar que se respira, com o à-vontade com que se ensaia voltar a viver, com o optimismo, quanto a mim tão exagerado quanto fascinante, com que se olha o futuro.

Para mim, estes dias têm sido uma lição de humildade e democracia. Quem sou eu para decidir o que é melhor para os outros no seu próprio país? Que tipo de imperialismo político e intelectual legitima a minha arrogância quando ela excede a minha opinião? Seria um exercício interessante para algumas elites politizadas e militantes do Brasil, a descida dos seus luxuosos “flats” nas melhores zonas do Rio e de todo país e ouvir um pouco o Povo. O Povo maravilhoso e de resiliência infinita. O samba está na rua!

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.