Passados dois anos de guerra começa a ser tempo de comparar aquilo que tem sido dito com o que na realidade aconteceu e está a acontecer. Urge confrontar as palavras com os factos e tirar conclusões. Os factos vieram dar-nos razão, confirmando na generalidade os nossos comentários e previsões, que refletiam uma posição surpreendentemente minoritária. Ilustraremos o que pretendemos demonstrar com alguns exemplos.
Contrariando a maioria, que via nos recuos táticos dos militares russos em Kherson e Karkhiv, no verão e outono de 2022, o caminho para a vitória ucraniana, previmos com bastante precisão o desenlace da ofensiva ucraniana no verão de 2023, e explicámos com bastante rigor os motivos desse desaire militar e a incapacidade ucraniana para fazer recuar as forças russas até às fronteiras de 1991, e, em particular, expulsá-las da península da Crimeia.
O mesmo se pode dizer quando apontámos a perigosa ingerência de potências estrangeiras no conflito que opõe a Rússia à Ucrânia, com o recurso a soldados e agências nacionais a operar não oficialmente em território ucraniano. Vieram recentemente a público notícias que confirmaram o que afirmámos. Foi o próprio chanceler alemão Olaf Scholtz que referiu o envolvimento dos britânicos no conflito. Essa ingerência britânica foi também confirmada pelos altos comandos da Força Aérea alemã, numa conversa telefónica intercetada.
Os britânicos são fundamentais para a operação dos mísseis Storm Shadow, utilizados pelos ucranianos. Existem fortes suspeitas de terem operado os mísseis Patriot que abateram o avião civil russo que transportava prisioneiros de guerra ucranianos. Mas a interferência britânica foi particularmente útil e eficaz no que respeita à destruição de navios de guerra russos da esquadra do Mar Negro. Esse empenhamento terá mesmo levado o Chefe do Estado-Maior de Defesa britânico Almirante Sir Tony Radakin a protelar a sua passagem à reserva.
Num registo semelhante, veio também à liça o Presidente francês Emmanuel Macron, quando reconheceu a permanência informal de soldados franceses ao lado das forças ucranianas, confirmando aquilo que tínhamos vindo a alertar. O que até aí era feito dissimuladamente passou a ser assumido oficialmente. Afinal, as potências ocidentais estão envolvidas no conflito, estão em guerra com a Rússia, mas a meio gás. Dispenso de comentar a gravidade de que se reveste este tipo de atuação.
Também afirmámos que a Ucrânia tinha sido impedida de fazer a paz, em março de 2022. Essas afirmações não foram igualmente bem aceites. Mas declarações posteriores de vários responsáveis vieram confirmar, na íntegra, a justeza daquilo que tínhamos afirmado. Perdeu-se uma oportunidade de terminar a guerra em condições não desfavoráveis à Ucrânia.
Davyd Arakhamia, membro da delegação ucraniana às negociações em Istambul, e Naftali Bennett, antigo primeiro-ministro israelita, que liderou uma iniciativa de mediação de Israel, confirmaram aquilo que afirmámos. Recentemente, o “The Wall Street Journal” apresentou uma versão do acordo prestes a ser aprovada, não tivesse existido a intervenção de Boris Johnson junto de Kiev.
O que antes foi considerado uma suposição herética, afinal, é mesmo um facto. Entretanto, o antigo chairman do comité militar da NATO, o general alemão Harald Kujat veio confirmar tudo o que afirmámos: “houve negociações em Istambul com um excelente resultado para a Ucrânia”. “Todos os ucranianos mortos, assim como todos os russos mortos ou feridos depois de 9 de abril [de 2022], devem-se ao facto de a Ucrânia não ter sido autorizada a assinar este tratado de paz”.
Sempre dissemos ser uma falácia a convicção de que os fornecimentos de armas ocidentais fossem alterar a situação estratégica na frente de batalha a favor de Kiev. Pelo contrário, iriam prolongar os combates e exaurir ainda mais os ucranianos, mas não derrotar o Kremlin. Somos agora acompanhados neste raciocínio por Harald Kujat, que vem dizer exatamente o mesmo. Afinal, como sempre dissemos não há armas maravilha, “game changers” como foi afirmado tantas vezes por muitos especialistas espontâneos.
Convém questionarmo-nos se a solução que vier a ser encontrada para o conflito será melhor para Kiev do que aquela possível de obter em 2022. Seguramente que não. Após três anos de guerra na Bósnia, cerca de 100 mil mortes e um país destruído, o acordo assinado pelas partes em Dayton representou uma solução política consideravelmente pior daquela que teria sido obtida se o plano Cutileiro acordado em Lisboa, três anos antes, tivesse sido implementado. À semelhança do que aconteceu na Bósnia, o futuro da Ucrânia não se afigura diferente.
Contra a maioria, sempre negámos que a Rússia estava à beira de um colapso logístico e dissemos que essas afirmações eram falsas e não passavam de propaganda. Passados dois anos, o mainstream ocidental veio a descobrir, de um dia para o outro, que a Rússia já não combatia com enxadas e pás, nem roubava máquinas de lavar para lhes retirar os chips, e passou a estar em condições de invadir a Europa e de colocar armas nucleares no espaço. Este double thinking deve merecer uma reflexão muito cuidada dos leitores sobre a qualidade daquilo que lhes tem vindo a ser dito.
Antevimos, com um mês de antecedência, a demissão do general Zaluzhznyi das funções de Chefe do Estado-maior das Forças Armadas ucranianas. Também essa avaliação foi desvalorizada e considerada campanha desestabilizadora anti Ucrânia. Os factos mais uma vez falaram por si.
Sempre dissemos, ao contrário do que prevalecia no mainstream, que a guerra não tinha começado em 2022. Recordemos as palavras do Presidente Biden, em 24 de fevereiro de 2022, ao afirmar: “Os militares russos lançaram um ataque brutal contra o povo da Ucrânia sem provocação, sem justificação, sem necessidade”. Também neste tema mudou a narrativa. Num discurso no Parlamento Europeu, o secretário-geral da NATO Jens Stoltenberg contradisse a narrativa oficial: “a guerra não começou em fevereiro do ano passado [2022]. Começou em 2014”.
Do ponto de vista tático, fomos duramente criticados quando chamámos à atenção para a necessidade da Ucrânia estabelecer uma postura defensiva, a qual passava pela construção de uma linha fortificada, à semelhança da linha Surovikin, construída seis meses antes da ofensiva ucraniana do verão de 2023.
A sua construção teria permitido às forças ucranianas economizar meios e prepararem-se para um futuro embate com as forças russas em melhores condições. O que se está a verificar após a queda de Avdeevka comprova na plenitude o que afirmámos. As forças ucranianas encontram-se desprovidas de uma capacidade defensiva apropriada para fazer face aos desafios com que vão ter de se defrontar no curto prazo.
Também previmos a possibilidade de os ucranianos poderem vir a deparar-se com a situação difícil em que se encontram, devido à escassez do apoio ocidental. A situação ainda não se encontra no ponto que previmos, mas para lá caminha. Seria bom para Kiev que a nossa previsão não se concretizasse.
As baixas ucranianas têm sido um dos assuntos mais escamoteados na campanha mediática que acompanha a guerra. Depois dos 100 mil mortos ucranianos anunciados pela Presidente da Comissão Europeia, passados uns meses o “New York Times” (NYT), baseado em fontes ucranianas anónimas, indicou 70 mil, e, mais recentemente, o presidente ucraniano Zelensky indicou 31 mil baixas. As rigorosas fontes pró-ucranianas conseguem o milagre das rosas. As baixas ucranianas reduzem com o prolongamento da guerra.
A insanidade demagógica da Comunicação Estratégica que tem imperado no Ocidente impede os cidadãos de perceberem o quão dramática é a situação de Kiev neste capítulo. Procura a todo o transe esconder que as baixas ucranianas rondarão um número entre os 450 e os 600 mil mortos e feridos. Quem acompanha a situação conhece as dificuldades das autoridades militares em recompletarem as unidades que combatem na linha da frente. Um descuido, aparentemente involuntário, de uma parlamentar ucraniana do Partido “Servos do Povo”, referiu cerca de 25-30 mil baixas mensais.
Esta situação é o resultado da guerra de atrição levada a cabo pelas forças russas, tantas vezes negada. Infelizmente, a escolha de quilómetros quadrados conquistados como a métrica de excelência para avaliar o progresso e a situação de uma força militar, esquecendo todas as outras dimensões, nomeadamente as intangíveis, tem recolhido a preferência dos comentadores mais desinformados, e, como tal, mais suscetíveis de serem influenciados pelas fações.
Ataque preemptivo?
Uma das questões que tem suscitado debates bastante acessos prende-se com a natureza preemptiva do ataque russo, em 24 de fevereiro de 2022. Isto é, terá sido uma ação militar em antecipação contra um alvo que estava prestes a iniciar um ataque militar? Será absolutamente correto que “os militares russos lançaram um ataque brutal contra o povo da Ucrânia sem provocação, sem justificação, sem necessidade”, como afirmou nesse mesmo dia o presidente dos EUA, Joe Biden?
A profundidade do tema justifica uma análise que não faremos neste texto. Contudo, algumas notícias que vieram recentemente a público permitem reavaliar os motivos da ação russa. É sempre importante relembrar os relatórios da missão da OSCE na Ucrânia, localizada na linha de separação entre as forças ucranianas pró-governo e pró-russas, convenientemente esquecidos, que assinalavam nos dias que antecederam a invasão russa o dramático aumento de fogos indiretos da parte ucraniana. Eram, na prática, fogos de preparação do assalto ao Donbass pelos cerca de 100 mil militares ucranianos ali estacionados.
Muito interessante e clarificadora foi a intervenção de Evgeniy Muraev, ex-candidato presidencial e presidente do, entretanto, proibido partido “Nashi”, em 14 janeiro 2022, dias antes da invasão, e que só agora chegou ao nosso conhecimento. A marinha britânica estava a preparar a construção de bases na região de Odessa, em território ucraniano. Dizia ainda Muraev, “se nós tivermos no nosso território algum tipo de armamento que eles [os russos] considerem perigosos, então nós estaremos na zona de impacto. A federação russa atuará em conformidade, porque isso será uma ameaça à sua segurança nacional.”
Por sua vez, o NYT veio dizer aquilo que já se sabia, mas que não podia ser dito sem se ser acusado de difundir desinformação russa. Afinal a CIA estava presente na Ucrânia há mais de uma década, mesmo antes do Euromaidan. Segundo o NYT, a CIA admitiu ter ajudado a construir, equipar e operar 12 bases subterrâneas secretas ao longo da fronteira com a Rússia, para espiar e lançar ataques contra o território russo.
Para além disso, a CIA patrocinou e construiu a agência de informação militar ucraniana, tendo-a utilizado durante mais de uma década como arma de espionagem, assassinatos e outras provocações dirigidas contra a Rússia. Ainda segundo o NYT, a agência, durante esse período, formou, treinou e armou forças paramilitares ucranianas que participaram em assassínios e outras provocações contra as forças russas na Crimeia e na Rússia.
A longa ingerência de potências estrangeiras na Ucrânia tinha-se tornado inaceitável para a Rússia. A sua grande preocupação relativamente à Ucrânia era, e continua a ser, acima de tudo, de natureza securitária, procurando que não sejam colocadas bases militares e armamento no seu território. Mas isso não foi respeitado. Podemos antever sem grande margem de erro qual seria a reação dos EUA ou do Reino Unido perante uma situação similar nos seus territórios.
Antevendo um desfecho deste conflito bastante desfavorável para a Ucrânia, defendemos desde o seu início uma solução política mediada, em que a Ucrânia perdesse o menos possível. Esta abordagem foi violentamente criticada, como se estivéssemos a beneficiar o infrator e a fazer a apologia do agressor. Na “onda do que está a dar,” alguns dos que defendiam com profunda determinação a continuação da guerra até à derrota da Rússia, têm vindo convenientemente a reformular o seu discurso.
Primeiro, defendendo a continuação dos combates até que a Ucrânia se encontre numa situação negociável forte; mas como essa situação é cada vez menos plausível, reformularam uma vez mais o discurso. Alguns tiveram o descaramento de vir dizer que “sempre se soube que o conflito acabaria com cedências de parte a parte”, demorando dois anos a aproximarem-se daquilo que sempre defendemos, e que os factos aconselham que aconteça quanto mais depressa melhor.
Esquecendo a história – as tentativas das grandes potências derrotarem a Rússia no seu território tiveram sempre o mesmo fim. Suecos, polacos, franceses e alemães sabem do que falo – e os frequentes erros de cálculo norte-americano (Vietname, Afeganistão, Iraque e Líbia, entre outros), os europeus embarcaram em mais um erro de cálculo da grande potência, que se está a transformar numa aventura dolorosa para a maioria.
Por isso, faz cada vez mais sentido a mobilização das opiniões públicas contra a fação insana dos promotores da narrativa belicista que procura envolver a Europa numa guerra mundial cujos resultados não são difíceis de antecipar.