A abordagem social da eutanásia é um processo em curso, muito longe de estar fechado. Debate após debate, conversa após conversa, opinião após opinião, só podemos concluir que há uma enorme e perigosa confusão de conceitos, desinformação generalizada e infinitamente mais dúvidas que certezas. É este o ambiente certo para legislar? Haverá legitimidade política neste momento para legislar? Que impacto social teremos se tivermos a legalização da eutanásia? Que aconteceu nos países que legalizaram a eutanásia?

Proponho, por isso, uma análise em diferentes planos, para uma visão global das consequências da legalização da eutanásia. A metodologia que segui para fundamentar a minha posição sobre o assunto.

O plano da legitimidade política

Em final de maio de 2018, o parlamento passou por esta discussão e por este processo legislativo, tendo a legalização da eutanásia sido chumbada. Portanto, há menos de dois anos o legislador decidiu sobre a matéria, rejeitando a eutanásia. Ao forçar nova discussão sobre a mesma matéria e novo processo legislativo nesta altura, desrespeita-se flagrantemente o princípio da estabilidade legislativa em nome da agenda ideológica. Tentam rever precipitadamente legislação de que não gostam, apenas porque creem conseguir uma maioria aritmética na nova configuração parlamentar, configuração essa que resulta de um acto eleitoral que não discutiu a eutanásia em momento algum.

O partido mais votado das últimas eleições, o PS, não teve uma única referencia à eutanásia no programa eleitoral que propôs aos eleitores. Bloco, PAN e Livre tinham referências nos seus programas, mas não promoveram uma única discussão, ou sequer anúncio, sobre a matéria, tendo tido os votos de uma minoria dos eleitores. Terão agora estes partidos legitimidade para legislar à pressa, ao fim de menos de dois anos, literalmente nas costas dos portugueses?

Obviamente, na circunstância actual, a legitimidade política do legislador está ferida de morte. Forçar este processo legislativo é um atentado à credibilidade e confiabilidade do Parlamento.

Tendo em conta a resposta da sociedade civil à obstinação ideológica do legislador, havendo uma impressiva mobilização social em torno da petição de um referendo sobre a matéria; haverá legitimidade política do Parlamento para negar a pronúncia dos portugueses? A que pretexto? Não é o referendo um dos instrumentos mais nobres da democracia? Não é a eutanásia, e toda a repercussão que terá sobre o conceito de inviolabilidade da vida humana, matéria suficientemente séria para que o povo se pronuncie?

O plano ético e jurídico

O Artigo 24, nº 1 da Constituição da República Portuguesa diz: A vida humana é inviolável. De seguida, no nº 2 do mesmo artigo diz-se que em caso algum haverá pena de morte. A inviolabilidade da vida humana, ou a vida humana como valor absoluto, é o pilar fundamental do ordenamento jurídico e, consequentemente, da nossa organização social. Relativizar este princípio é subverter a composição do tronco fundamental que suporta o que conhecemos como civilização europeia ou ocidental. A primeira metade do século XX foi infelizmente fértil a ilustrar os efeitos da relativização do primado da vida. Não há memória de uma vez em que os agentes políticos não invocassem uma razão ponderosa para pôr em causa a inviolabilidade da vida humana. Curiosamente, tal como agora, houve sempre uma fuga à terminologia concreta do acto, para acalmar consciências. É importante que se diga, não estão a legislar sobre a dita “morte assistida”, estão a legislar sobre a eutanásia que, concretamente, é a faculdade de um cidadão pedir ao Estado que nomeie um agente e forneça meios para o matar. Sim, o mesmo Estado que até agora obedecia ao referido artigo 24 da Constituição, passa a violar a vida humana, a matar, a pedido de um cidadão.

O plano dos conceitos

O que está em discussão e processo legislativo é a eutanásia. A confusão de conceitos pelos promotores da eutanásia busca amplificar apoios que de outro modo jamais existiriam. Este tem sido um processo de promoção da ignorância, onde mais esclarecimento e informação deveriam existir. Passemos por isso à clarificação de conceitos.

Eutanásia é o acto de antecipar a morte de uma pessoa, a pedido da própria, no quadro de uma doença terminal ou incurável associadas a sofrimento físico ou psicológico. Nos poucos países em que a eutanásia é legal, este acto compete exclusivamente ao médico, que mata a pedido do doente e ordem do Estado.

Suicídio assistido é quando o próprio doente põe termo à vida. Pode haver colaboração de um terceiro, como o médico que receita o fármaco, mas o acto é levado a cabo pelo próprio. É o caso da legislação suíça, para evitar precisamente a complexidade que resulta da interferência do Estado no princípio da inviolabilidade da vida humana.

Ortotanásia acontece quando se procede à suspensão ou minimização de tratamentos que prolongam a vida de um doente terminal, sem que se traduzam em qualquer melhoria do seu estado de saúde; trata-se de não fazer procedimentos excessivos para prolongar artificialmente a vida. Isto já acontece, está nas boas práticas médicas e não ofende qualquer legislação ou princípio ético ou moral.

Distanásia é sinónimo de obstinação terapêutica, forçando o prolongamento da vida de um doente terminal, recorrendo a tratamentos desproporcionados. É considerada uma má prática médica, sendo vedada pelo Código Deontológico dos Médicos.

Como facilmente se percebe, esta distinção é importante porque assistimos a uma desinformação propositada, que mistura diferentes conceitos quando o único objectivo é legalizar a eutanásia em sentido estrito, e nada mais. É permitir que o Estado ponha um médico a matar a pedido de um doente, e nada mais. A Ortotanásia já é permitida, encorajada e praticada e a Distanásia já é proibida, não havendo vítimas do também chamado encarniçamento terapêutico.

O plano social

A eutanásia acabará por se cruzar inevitavelmente com o ordenamento socioeconómico, criando uma profunda desigualdade.

Imaginemos um idoso dependente, com uma doença incurável, sem acesso a cuidados paliativos, a viver em solidão numa casa despida ou num quarto de pensão, sem laços familiares activos.

Imaginemos um idoso dependente, com uma doença incurável, sem acesso a cuidados paliativos, a viver num T3 com a filha, o genro e três netos.

Imaginemos agora um idoso, com o mesmo grau de dependência, o mesmo tipo de doença, mas com a independência financeira que lhe permite estar numa residência assistida, com acesso a cuidados paliativos de qualidade, tendo a visita dos seus familiares sem lhes provocar transtornos exagerados nas suas rotinas de vida.

Qual destes idosos se sentirá mais tentado a requerer a eutanásia? Poderemos dizer que os factores imanentes da sua condição social e económica não condicionam a sua escolha de antecipação da morte? Esta dúvida é suficiente para rejeitar liminarmente a eutanásia como mecanismo de aprofundamento da desigualdade social e desrespeito da dignidade humana em matéria de direitos fundamentais. As 6.000 vidas, seis mil, sim, ceifadas pela eutanásia só no ano passado na Holanda dão uma resposta elucidativa a estas questões da vida real.

O plano médico e científico

A Ordem dos Médicos Portugueses deu parecer negativo a todos os projectos em discussão neste momento sobre a eutanásia.

A Ordem dos Enfermeiros Portugueses deu parecer negativo a todos os projectos em discussão neste momento sobre a eutanásia.

O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida deu parecer negativo a todos os projectos em discussão neste momento sobre a eutanásia.

Os seis ex-Bastonários vivos da Ordem dos Médicos pronunciaram-se sem excepção contra os projectos em discussão neste momento sobre a eutanásia.

Merecerá mais confiança a comunidade científica, através dos seus legítimos representantes, ou uma parte dos Deputados eleitos sem mandato claro para o efeito, a legislar por obstinação ideológica?

Poderá o Estado obrigar os médicos a violar grosseiramente o Juramento de Hipócrates, um documento fundamental que os guia na defesa da vida há 2.500 anos?

Como lidará o Estado com os inevitáveis e fundamentados objectores de consciência?

O plano dos valores

Fala-se muito do direito a morrer dignamente. Dignidade na morte, tem-na toda a gente que é digna. E mesmo os indignos, se nessa altura se arrependerem da sua indignidade.

Fala-se perversamente de morte assistida. Morte assistida, toda a gente tem direito a tê-la. Apesar de ser provavelmente dos momentos mais solitários da experiência humana, deve por isso mesmo ser um momento de acompanhamento intenso e sentido dos mais próximos, e, sempre que necessário, de assistência clínica de conforto.

Na essência desta “causa” está a doutrina actual da recusa do sofrimento. Quando se fala em dignidade, fala-se da recusa do sofrimento, entende-se o sofrimento como indigno. Não é. É parte integrante da vida. É motor de crescimento. É escala das alegrias e dos mais profundos contentamentos. Sofremos de diversas formas ao longo da vida, não devemos procurar o sofrimento, devemos atenuá-lo sempre que possível, mas devemos aprender a lidar com ele sempre que se nos apresenta inescapável.

Juram-nos, os mesmos que nos mentem e confundem, que a lei é segura, que não haverá o efeito de rampa deslizante, que em Portugal não acabaremos a ver o Estado matar crianças e pessoas com deficiência e perturbações mentais. E poderemos perguntar que garantias dá Portugal, que a Holanda e a Bélgica não conseguem dar? Quem nos diz que não estaremos daqui por dois ou três anos a discutir o comprimido letal livre para maiores de 70 anos, como já acontece nestes países?

Em termos pessoais, por todo o acima exposto, por uma fé inabalável na democracia, na ordem de valores que fundou a Europa civilizada e que tem raiz no primado da vida e na Declaração Universal dos Direitos do Homem, só posso ser inequivocamente contra a legalização da eutanásia.

Compreendo os apaixonados da liberdade individual, eu também o sou, mas obrigo-me a uma paixão responsável por essa liberdade, como modo único de a garantir a todos; nunca a minha liberdade individual poderá subverter o quadro dos valores que garantem a liberdade e integridade de todos. Nenhum homem é uma ilha.

Compreendo, e tenho sido repetidamente confrontado com o drama do caso concreto. A compaixão, a solidariedade com a realidade individual não pode interferir com o quadro geral, com o equilíbrio da sociedade como um todo, a lei não pode ser feita para o caso concreto, é sempre geral e abstrata.

Enquanto cidadão do mundo, não posso ignorar que dos 193 países que integram a ONU, apenas seis, sim seis, resolveram legalizar a eutanásia. Só há seis países esclarecidos em 193? Devemos ignorar os resultados dramáticos da legalização nesses seis países, e achar que em Portugal tudo vai ser diferente?

Para terminar, e na observância do princípio filosófico de São Tomás de Aquino, que apela ao dever moral de resistência à lei iníqua, só poderei desejar um referendo que permita ao Povo contrapor democrática e esclarecidamente a sua vontade em contraste com a fúria ideológica de parte do legislador.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.