Muitos programas, muitas siglas e a bazuca na boca de toda a gente. E a maior confusão sobre as verbas de origem comunitária a que Portugal poderá aceder na década 2021/2030.

Tentando não baralhar ainda mais a situação, é minha intenção alinhar, aqui, uns quantos números para se chegar a um montante indicativo e aproximado das verbas finais, porque ainda não há valores definitivos. São verbas estimadas embora com elevado grau de probabilidade. E as razões são várias: ou estão dependentes de certos indicadores como a evolução do PIB em Portugal e na União Europeia, ou as negociações entre os 27 Estados-membros não estão finalizadas, ou o próprio Parlamento Europeu ainda não se pronunciou, ou a fixação exacta percorre os meandros dos corredores europeus.

Uma primeira ideia convém, no entanto, reter: nem todas as verbas têm origem na “bazuca” de António Costa. Aliás, as verbas a que o primeiro-ministro se referiu quando usou a figura da bazuca são uma pequena parcela do montante global (22% na hipótese mínima adiante estimada), tanto mais quando é intenção do primeiro-ministro não recorrer, para já, à componente de empréstimo do Mecanismo de Recuperação e Resiliência, diminuindo assim o alcance da bazuca de que Portugal pode usufruir.

Avançando por partes e sem uma análise do enorme apoio à economia resultante do Banco Central Europeu (BCE), aliás, a quem ficou a dever-se a expressão “bazuca” no tempo do anterior presidente, Mario Draghi.

Mario Draghi disparou, então, a grande bazuca e com ela salvou o Euro. “O presidente do Banco Central Europeu vai comprar 60 mil milhões de euros de ativos por mês a partir de março até setembro de 2016, maioritariamente dívida pública. As compras serão feitas com base na proporção de capital de cada país no BCE” (Euronews, Janeiro de 2015).

Poucos ficaram com a percepção exacta do impacto desta decisão de Mario Draghi. Foi mesmo a “safa” da moeda europeia. Imagine-se o que seria uma desvalorização descontrolada da moeda Euro!

As verbas da década

  • 12,9 mil milhões de euros (as verbas da bazuca) a fundo perdido

É a verba indicada a Portugal através do Mecanismo de Recuperação e Resiliência no contexto das subvenções da União Europeia, cujo valor global é de 312,5 mil milhões. De momento, Portugal já dispõe de 9 mil milhões para utilizar em 2021 e 2022, quando estiver negociado com a Comissão o PRR – Plano de Recuperação e Resiliência, que o Governo português tem tentado negociar com os partidos políticos e parceiros sociais e entregar a 15 de Outubro em Bruxelas para negociação. Os restantes 3,9 mil milhões só ficarão definidos em Junho de 2022 consoante a evolução do PIB nos dois anos anteriores. Há quem admita que este valor possa subir ligeiramente. Assinale-se que a componente de empréstimo da bazuca que o primeiro-ministro não pretende utilizar é da ordem de 15,7 mil milhões de euros.

  • 29,8 mil milhões de euros 

É o montante do envelope que Portugal deverá obter do próximo Orçamento Comunitário 2021-27 (QFP – Quadro Financeiro Plurianual), também conhecido por programa vinte/trinta, devido ao deslize normal de três anos na utilização das verbas. Aqui estão incluídas as verbas da Coesão (21 mil milhões), da Política Agrícola Comum (8,4 mil milhões), da Pesca (116 milhões) e do Fundo de Transição Justo (87 milhões). Valores estimados, pois ainda decorrem as negociações entre os 27, com a possibilidade de pequenos ajustamentos.

  • 12,8 mil milhões de euros

É o valor que falta aplicar do actual Quadro Financeiro Plurianual (QFP), conhecido pelo programa vinte/vinte (2020) que se estende até 2023. Representa um montante muito significativo. A sua aplicação vai sobrepor-se durante três anos à do PRR, o que exige olear os mecanismos de execução em todas as frentes. Há incertezas e retraimento da parte empresarial sobre a capacidade de concretização de alguns projectos do 2020. A comunicação social tem sido eco de empresas com dificuldades neste domínio, receando-se que vários projectos do 2020, devido aos efeitos e incertezas da pandemia na viabilidade dos mesmos, possam acusar atrasos ou mesmo desistências.

  • 1,8 mil milhões de euros

Esta verba corresponde a um reforço da coesão através do REACT/EU. Com estes valores podemos fazer umas primeiras contas. E mesmo sem contar com o valor do empréstimo da bazuca, Portugal terá acesso na década 2021/30 a um montante da ordem de 57,3 mil milhões de euros (hipótese mínima).

Adicionando o valor do empréstimo (15,7 mil milhões) atinge-se os 73 mil milhões de euros.

A estes 73 mil milhões seria possível acrescentar ainda algumas verbas de empréstimo relacionadas com o aprovado no Eurogrupo e outras fontes, que nos aproximariam de um montante na ordem dos 78/80 mil milhões de euros, verba ao nível dos empréstimos globais do tempo da troika, mas em condições completamente diferentes em juros e exigências. Isto sem considerar o recurso ao BEI, uma fonte de financiamento para projectos específicos.

Por outro lado é possível reforçar os 12,9 mil milhões a fundo perdido, podendo chegar-se a um montante de cerca 15,3 mil milhões pelo recurso a verbas de coesão, fundo de transição justo e desenvolvimento agrícola.

Estamos assim perante uma hipótese mínima da ordem dos 58 mil milhões e de uma outra mais elevada em torno dos 80 mil milhões de euros.

Neste ponto, a questão é: estamos a prepararmo-nos para este combate? Francamente, o País está perante uma oportunidade única. Há que apostar. Mas estou algo desiludido. Quando olho para algumas entidades como o Tribunal de Contas a rejeitar liminarmente a ideia da simplificação dos concursos públicos, alegando que tal simplificação abre uma porta à corrupção, sem avançar contrapropostas de alteração, mantendo o statu quo, numa atitude conservadora de defesa da sua “capela”.

Abstenho-me de contra-argumentar e prefiro citar a cientista Elvira Fortunato numa entrevista muito recente ao “Expresso”: “A burocracia da Administração Pública é um problema fundamental. No limite até preferia ter menos financiamentos mas um sistema científico com menos burocracia. Há mais de um ano que estamos a tratar de um concurso público para a aquisição de um grande microscópico que custa dois milhões de euros, apesar de termos o dinheiro, que vem da minha segunda bolsa avançada atribuída pelo Conselho Europeu de Investigação, no valor de €3,5 milhões. Porque há muitas portas, muitas autorizações, muitos procedimentos. E porque mesmo sendo o dinheiro de um projecto europeu tem um tratamento nas contas da universidade como se fosse do Orçamento do Estado”.

Elvira Fortunato acrescenta ainda: “Na máquina da AP até os próprios ministros têm dificuldade em se mover. Depois dizem-nos sempre que o problema está relacionado com as regras europeias, mas é mentira, porque a burocracia da Administração Pública portuguesa é diabólica, as plataformas informáticas e os formulários são muito complexos”.

Se toda a gente se queixa da burocracia nefasta e excessiva porquê rejeitar uma mudança sustentada? Será que não se podem montar modelos de funcionamento eficazes com as novas tecnologias que permitam percorrer o caminho da transparência e de maior controlo?! Será que a burocracia actual que condiciona o andamento dos processos tem impedido de facto o aumento da corrupção? A experiência da vida não vai por aí e até nos ensina que nos corredores da burocracia se gera muita corrupção.

Preocupa-me não ter vindo do Tribunal de Contas uma posição construtiva, de apoio à simplificação segura e, pelo contrário, uma posição defensiva do status existente.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.