“VIRTVTIBVS MAIORVM VT SIT OMNIBVS DOVMENTO”

(inscrição em latim gravada no pórtico de entrada da Biblioteca Joanina em Coimbra)

 

O conceito de sociedade do conhecimento remonta a 1959, quando Peter F. Drucker publicou o seu livro “The Landmarks of Tomorrow”. Nesta obra, o escritor e economista austríaco foi pioneiro no reconhecimento da importância crescente do conhecimento nas sociedades modernas. Os knowledge workers, como lhe chamou Drucker, seriam o fator decisivo para o sucesso das empresas no futuro, à medida que a economia se tornasse cada vez mais baseada na ciência e na tecnologia.

Os avanços tecnológicos, a globalização económica, a mobilidade de pessoas e bens e a instantaneidade da informação vieram confirmar a visão de Drucker. Assistimos ao advento de uma nova sociedade assente em organizações cujo maior ativo é o conhecimento, aqui entendido como capital humano qualificado, incorporação de tecnologia nas cadeias de valor, capacidade de inovação, produção de bens digitais (software, aplicações, bases de dados) e criação de ativos intangíveis (goodwill, propriedade intelectual, design, marca).

A combinação entre talento e inovação é vista, hoje, como a “bala de prata” para uma sociedade mais próspera e uma economia mais produtiva e competitiva. Veja-se a apologia que os relatórios Letta e Draghi fazem das potencialidades do talento e da inovação enquanto fatores críticos para a transformação da Europa numa potência tecnológica e, desta forma, numa economia liderante no contexto global. A União Europeia (UE) precisa urgentemente de recuperar do atraso tecnológico face aos EUA e à China. Mas, para isso, tem de formar, fixar e atrair talento e investir fortemente na inovação.

‘We are the robots’

Nunca houve, na história da Humanidade, uma tão rápida evolução da ciência e da tecnologia. Há até quem defenda, como o colunista do The New York Times Thomas L. Friedman, que a velocidade do desenvolvimento tecnocientífico superou a capacidade humana.  A ideia parece ser corroborada por um outro jornalista e escritor, o mexicano Juan Villoro (“Não Sou um Robô”, Zigurate, 2025), que observa que somos a primeira geração a quem é exigido que faça prova de pertencer à espécie humana. Algo que fazemos com frequência em sites e apps, quando confrontados com processos de segurança que verificam se o utilizador é um ser humano ou um bot.

O avassalador progresso científico e tecnológico não dá mostras de abrandar. Desde logo, porque é potenciado pela IA. Prevê-se que a AGI, a Inteligência Artificial Geral, possa chegar antes de 2030. Isto significa que as máquinas vão atingir um patamar de desenvolvimento equivalente ao dos humanos, resolvendo, com a mesma capacidade e competência, quaisquer desafios intelectuais. Até agora, a IA cingia-se às tarefas e domínios para a qual estava programada, limitando-se a replicar os processos da inteligência humana. Com a AGI, há a possibilidade de os computadores aprenderem, compreenderem e resolverem problemas com a mesma autonomia da inteligência humana.

A revolução digital está, contudo, a provocar a exclusão de largas franjas da população. Muitas pessoas no mundo sentem-se ultrapassadas pela aceleração do tempo histórico e social provocado pelos avanços tecnológicos. Não só porque não dispõem de competências digitais, mas também porque as suas atividades profissionais se estão a tornar obsoletas ou a ser desconsideradas. A IA tende a extinguir as profissões mais rotineiras e de baixo valor acrescentado. Mas está, igualmente, a ameaçar as profissões de maior exigência intelectual e técnica, com os modelos de linguagem generativa.

O novo lúmpen de marginalizados pela tecnologia é, a meu ver, o fermento que tem feito crescer o populismo. A extrema-direita soube puxar para si o estandarte da luta de classes, agora travada entre os que têm conhecimento e os que não têm, e está a mobilizar em seu favor os ressentidos com a revolução tecnológica e seus impactos sociais. Os populistas têm liderado os movimentos anticiência (negacionismo climático, oposição à vacinação, terraplanismo, criacionismo) e, paradoxalmente, fazem uso das plataformas digitais para disseminarem fake news e teorias da conspiração que alimentam a hostilidade ao conhecimento – visto como instrumento de superiorização dos “de cima”, as elites, em relação aos “de baixo”, o povo.

Por seu turno, os algoritmos tendem a formar as propaladas “bolhas”, que supostamente justificam a alegada incompreensão dos “de cima” em relação aos problemas e expectativas dos “de baixo”. Sabemos que os algoritmos das redes sociais expõem, preferencialmente, as pessoas às suas próprias crenças, valores e opiniões, servindo para consolidar as mundividências de cada um. Formam-se, assim, as tais “bolhas”, que nos resguardam de ideias, factos ou perspetivas diferentes dos nossos. Porém, a lógica das redes sociais privilegia o conflitual, o estrondeante, o polémico, o grosseiro. É isso que capta a atenção e mobiliza as pessoas, gerando perceções da realidade com viés populista.

‘I want to live like common people’

O discurso anticiência e antielites serve para mais do que arrebanhar os deserdados da revolução digital. É também usado como pretexto para reprimir universidades, média independentes, instituições culturais e organizações cívicas, como temos visto nos EUA. Governos populistas como os de Trump, Orban ou Milei são, por um lado, libertários em relação à circulação de conteúdos tóxicos nas redes sociais, invocando um conceito enviesado de liberdade de expressão; e, por outro, procuram silenciar e oprimir quem defenda opiniões contrárias às suas.

Como na canção dos Pulp, “Common People”, muita gente parece querer viver como uma pessoa comum. Diaboliza-se a educação, a ciência, a cultura em favor de uma espécie de culto da ignorância, alimentado por líderes populistas que sabem que, sem conhecimento, mais facilmente manipulam ou adormecem as massas. Os fanáticos do movimento MAGA (Make America Great Again), nos EUA, fazem gala da sua vulgaridade e apedeutismo. E Trump, um homem da elite económica de Nova Iorque, tenta ser reconhecido como um common man. O resultado é a proliferação no espaço público de perceções mais do que realidades, de slogans mais do que propostas, de mentiras mais do que factos, de insultos mais do que advertências, de acusações mais do que críticas.

Ao invés, o acesso ao conhecimento tende a formar cidadãos mais esclarecidos, mais responsáveis, mais ponderados. O conhecimento favorece uma mundivisão mais clarividente e, por isso, menos propensa ao obscurantismo, ao sectarismo e à xenofobia que caracterizam os populismos que estão a envenenar as democracias liberais. O Estado de direito implica o conhecimento de princípios e normas fundamentais para a vida em sociedade, em particular a separação de poderes tão execrada pelos líderes populistas. Assim como as relações entre Estados não se devem basear em perceções ou preconceitos, mas sim num conhecimento sólido de História, geopolítica e direito internacional.

A polarização das sociedades é insuflada pelo choque entre o progresso infrene do conhecimento e os esforços de governos e movimentos populistas para condicionar a produção desse mesmo conhecimento e, em particular, o seu acesso generalizado. Ao colocar entraves à liberdade académica, científica e, claro, de expressão e de imprensa, está-se a criar um caldo de cultura que favorece o autoritarismo, acirra o artificial conflito massas-contra-elites e enclausura os “de baixo” nos seus preconceitos e perceções. Donde, a sobrevivência da democracia liberal depende muito da capacidade de preservar a produção do conhecimento e, sobretudo, de promover a sua democratização, para que ninguém fique para trás no desenvolvimento humano.