Vem aí mais uma revolução digital.
A União Europeia aprovou em Abril passado um regulamento que actualiza a identificação digital das pessoas jurídicas (cidadãos e organizações), o qual já entrou em vigor para todos os Estados-membros. É interessante porque terá profundas implicações sociais e económicas, estabelecendo também uma base absolutamente necessária à autoexecução da web3 na economia incumbente.
Tudo começa com o quinto considerando do referido regulamento: “os cidadãos e residentes na União Europeia devem ter o direito a uma identidade digital sob seu controlo e que lhes permite exercer os seus direitos no ambiente digital e participar na economia digital”. É que, até agora, no nosso espaço geopolítico, os consumidores têm sido obrigados a possuir múltiplas identidades digitais para poderem sobreviver no mundo da web e das apps.
Com efeito, nas transacções digitais actuais, cada canal de comunicação obriga à criação de um indentificador específico, como por exemplo o endereço de correio electrónico, onde a legalidade das transacções é assegurada com recurso a contratos bilaterais. O “li e aceito” é disso um bom exemplo, e casos há em que também é preciso assinar contratos em papel, o que é usual, por exemplo, no sector financeiro. A única excepção tem sido a chave móvel digital, com a qual é possível interagir essencialmente com vários organismos do sector público e alguns bancos.
A chave móvel é assim uma identificação jurídica comum a todas as entidades que a queiram aceitar, e está sob a responsabilidade das entidades públicas legalmente mandatadas para tal. Ora, o que o novo regulamento vem alterar é a extensão da identificação digital legalmente registada a todas as interacções digitais. De referir que a chave móvel funciona com o registo legal que salvaguardado no cartão do cidadão.
É um passo extremamente ambicioso por ser um contributo extraordinário para a aplicação da web3 à economia regulada, o que é de louvar, pois coloca a UE na dianteira do mundo ocidental.
Carteiras digitais para todos
A interacção digital entre pessoas jurídicas vulgarizou-se há décadas, como é o exemplo do simples pagamento com o fantástico MBWay ou com os clássicos cartões de débito. Mas, lá está, até nestes exemplos, a identificação jurídica subjacente à identidade digital utilizada é própria a cada fornecedor dos respectivos serviços financeiros e só pode ser usada no contexto das suas transacções, neste caso de cada pagamento.
Pois bem, a referida actualização do regulamento da UE passa a permitir que cada pessoa jurídica possa guardar a sua identificação digital numa carteira própria (chamemos-lhe wallet), a qual terá valor jurídico para rigorosamente qualquer transacção digital. E o seu âmbito passa a estender-se a tudo o que seja legalmente possível no contexto de cada prestador de serviços, muito para além das simples formas de pagamento. O mais interessante é que estas wallets vão apagar as fronteiras entre o mundo virtual da web e o mundo das interacções físicas, coisa que só as Super App tinham conseguido até hoje.
Assim, cada pessoa jurídica, individual ou colectiva, vai ser proprietária da sua wallet, e a forma de obrigar será exactamente aquela que está legalmente definida, como por exemplo o número de assinaturas referidas na certidão permanente da organização em causa. Já para as pessoas idóneas bastará apenas a sua própria assinatura. Naturalmente, os guardiões de todos estes direitos serão as entidades públicas mandatadas para gerir todo o sistema, de forma muito similar ao que já acontece hoje com a chave móvel digital.
De referir que a preocupação com a privacidade ao abrigo do famoso RGPD faz parte integrante do regulamento, e vai ao ponto de salvaguardar os dados dos consumidores até das próprias entidades gestoras.
Uma eficiência que cria valor económico
Tudo o que contribua para a eficiência da economia é estratégico. O próprio sucesso da web a partir da segunda metade dos anos 90 está assente na facilidade com que os consumidores passaram a poder comunicar entre si, pessoas, empresas e outras organizações. Mas uma coisa é comunicar, e outra completamente diferente é transaccionar.
Por exemplo, podemos hoje usar o WhatsApp para comunicar, incluindo com empresas, mas estamos proibidos de executar transacções reconhecidas por lei nesta App. Já na China, o WeChat é uma Super App que o permite, pois todas as suas transacções pressupõem uma assinatura qualificada equivalente à nossa chave móvel. Com o novo regulamente da UE, podemos imaginar a utilização de uma identificação jurídica semelhante à chave móvel através de qualquer canal digital, incluindo o WhatsApp, a web e a web3. Será, aliás, esse um dos pilares necessários à estratégia nacional web3, já aqui referida, pois esta legislação já era esperada.
A forma como este regulamento vai passar à práctica, as oportunidades subjacentes para todos os negócios com canais digitais (virtuais ou não), e as implicações para a estratégia digital nacional ficarão naturalmente para futuras reflexões. É altura de começar a sonhar e a construir o futuro e admirável universo digital das wallets cuja identidade tem valor jurídico.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.