Nos dias de hoje há indefinições e zonas cinzentas que mesmo ao mais paciente e compreensivo dos seres custa perceber. Sabemos que o médico pratica atos próprios do médico. Que o enfermeiro pratica os atos próprios do enfermeiro. Pese embora, de tempo em tempo possa passar pela cabeça de alguém que os enfermeiros possam praticar atos médicos e os médicos atos de enfermagem. Loucuras que rapidamente se curam pelo grotesco e ridículo da ideia.

A delimitação tem dificuldade em subsistir entre engenheiros civis, engenheiros técnicos e por vezes entre estes e os arquitetos no que tange à questão do ato de projeto. A confusão das áreas visa aproveitar o devir dos atos próprios das profissões, provocando falsa concorrência com outros profissionais que desempenham atividades de natureza aproximada ou idêntica para esmagar preços. Mas há invasões de esfera de atos próprios que são difíceis de compreender e aceitar.

É o caso dos notários quando praticam atos de magistrados judiciais ouvindo testemunhas e sentenciando sobre a produção de prova. Assim como inverosímil é saber que contabilistas desenrasquem contratos de trabalho, que imobiliárias façam contratos de promessa de compra e venda e contratos de arrendamento, com a cereja em cima do bolo, de assumirem representar ambas as partes e nisso não vislumbrarem qualquer conflito de interesses. E o que dizer das funerárias que tratam desde a marcha fúnebre até ao inventário com ou sem partilha. É, verdadeiramente, um fartar vilanagem a que o legislador nacional foi fechando os olhos ao longos dos anos.

E os advogados têm culpa na situação hoje vivida, em que os cidadãos e empresas são facilmente enganados pela aparente simplicidade do ato próprio para só mais tarde, em caso de conflito judicial, se aperceberem do logro em que caíram? É claro que têm. E muita. Há sucessivos congressos que proclamam a necessidade de uma vinheta jurídica. Em 2014, numa assembleia distrital de Lisboa, foram aprovados dois projetos que visavam a aprovação da vinheta e o alargamento do ato próprio. A verdade é que o tempo vai passando e, provavelmente, os solicitadores acabarão por ter antes dos Advogados a vinheta eletrónica.

Entretanto, enquanto isso, outros agentes e profissionais vão deitando olho e cobiçando o ato próprio do advogado. Estão, neste caso, as multinacionais prestadoras de serviços que não desistem de insistir na prática multidisciplinar. A mesma prática que foi responsável pelo escândalo da ENRON em 2008, mas que volvidos dez anos já todos esqueceram até ao próximo colapso. Estão no mesmo barco aqueles que pretendem afastar os advogados da ação executiva, como se o processo executivo não fosse um processo de litigiosidade bastante elevada e que pudesse ser resolvido sem recurso a advogados que representem as partes e sem um Juiz que decida o diferendo.

Advogados e juízes são culpados da desjudicialização? É claro que são e muito. Porque se o cidadão não percebe que o movimento de desjudicialização o desprotege e penaliza, os Advogados e os Juízes têm obrigação de o saber e de o denunciar. E a verdade é que, por razões distintas, têm feito muito pouco para tal evitar. É o velho lema do deixa andar que logo se vê. Mas assim não vamos lá. É o Estado de Direito que regride. É o exercício dos direitos dos cidadãos que é desmantelado.

No atual estado de arte da justiça é necessária uma clarificação do ato próprio do advogado para que só este possa praticar os atos para os quais obteve uma cédula profissional. Assim como é necessário que ao juiz seja dado a resolver o que ao juiz pertence. Doutra forma andamos todos a brincar à justiça e a enganar-nos à vez.