É cada vez mais notória a diferença entre o discurso e a realidade da governação socialista, que condena publicamente de forma inflamada a austeridade passista do tempo da troika, mas que, pela mão de Centeno, põe em prática uma austeridade de esquerda, muitas vezes mais chocante do que aquela que Portugal conheceu no período em que esteve financeiramente intervencionado.

Com a economia a crescer significativamente, fruto de uma conjuntura externa muito favorável, com o desemprego a reduzir-se dia após dia, com o défice orçamental a cair para níveis historicamente baixos – se descontarmos o efeito da recapitalização da Caixa Geral de Depósitos –, esperar-se-ia que o nível de vida dos portugueses tivesse entrado no rumo desejado, com uma melhor distribuição de rendimentos, capaz de beneficiar aqueles que por mais dificuldades passam, em função do seu baixo nível de rendimentos.

Puro engano. A carga fiscal, com claro predomínio para os impostos indiretos, nunca foi tão elevada, os serviços públicos nunca estiveram tão degradados, escolas, hospitais e centros de saúde vivem hoje situações de quase-falência, impróprios de um país que faz parte da União Europeia.

É certo que se aumentaram os salários, as pensões, que se extinguiu a sobretaxa extraordinária, mas, estranhamente, foram os mais favorecidos os principais beneficiários destas medidas, com os mais carenciados a ficarem, uma vez mais, a lamentar-se dos seus parcos rendimentos.

A situação que esta semana veio a público do Hospital de São João do Porto é só mais um exemplo da austeridade de esquerda. Faltam 22 milhões de euros para a construção da nova ala pediátrica e as crianças vítimas da praga do cancro amontoam-se nos corredores, no meio de condições pouco dignificantes. No entanto, há muitos mais milhões para a recapitalização da banca.

Fosse este um governo de direita e Bloquistas e Comunistas, que fizeram críticas moderadas à inercia de Centeno e companhia, logo pediriam a cabeça do ministro ou mesmo a demissão do executivo. Mas no Cristiano Ronaldo do Eurogrupo ninguém ousa tocar.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Um governo de esquerda tem patrocinado uma austeridade real, mostrando a sua ideologia apenas em matérias não económicas, como a possibilidade dos menores de 16 anos mudarem de sexo, mesmo que não possam tirar a carta de condução, comprar tabaco ou bebidas alcoólicas, a viabilização da adoção de crianças por casais de mesmo sexo ou a admissão de animais de companhia nos restaurantes.

Para quem esperava uma mudança radical de rumo em que relação ao que se tinha verificado no governo de Passos Coelho, não há dúvidas de que muito pouco se alterou, sendo, uma vez mais, os deserdados do mundo a ficarem órfãos de um crescimento económico que se vem desvanecendo.