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Barry Hatton: “Lisboa sugou tanto que o resto do país ficou na sombra”

Muitos daqueles que passeiam pela capital desconhecem as histórias que escondem as suas muralhas, tal como o rio que a ladeia ou a calçada que é marca nacional. Partilhando do desconcerto de Fernando Pessoa com o desconhecimento da cidade, o jornalista britânico Barry Hatton, que vive há 30 anos em Lisboa, recorda feitos históricos dos portugueses para mostrar porque é que Lisboa é a “Rainha do Mar”.
29 Junho 2019, 15h00

A capital portuguesa à beira-rio plantada é o ponto de partida do jornalista e escritor britânico Barry Hatton para o seu novo livro “Rainha do Mar”. Apaixonado por Portugal, percorre os acontecimentos que marcaram a história de Lisboa para confirmar que, tal como o escritor Eça de Queirós terá afirmado, “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem”. A concentração de acontecimentos na capital fez com que o país crescesse de forma desigual e trouxe à cidade a capacidade singular de reunir em pouco mais de 100 quilómetros quadrados mais de dois mil anos de História de Portugal.

No livro “Rainha do Mar” propõe-se a contar a história de Lisboa, mas acaba por contar um pouco daquilo  que é a História de Portugal. Porquê?
Portugal tem um problema de macrocefalia. Lisboa suga tanta coisa daquilo que está a acontecer em Portugal que o resto do país ficou na sombra. Como dizia o Eça de Queirós, “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem”. Era nesse sentido que surge a frase de Derek Walcott, de que as cidades fomentam a cultura porque há muito mais input e mais movimento e aquele caldo cultural que está sempre a ferver.

Derek Walcott dizia que “uma cultura é feita pelas suas cidades”. Pegando nessa frase, como definiria o povo português?
A capital é um bom exemplo de como os portugueses são não só hospitaleiros, mas também que se adaptam muito bem a tudo. Esta é uma ideia que vem já desde os Descobrimentos, e se calhar de muito antes, no tempo da ocupação do sul de Portugal pelos mouros. A chegada de gente de outras terras mostra também bem como os portugueses absorvem as diferenças e conseguem continuar a conviver de forma pacífica e simpática. Claro que houve acontecimentos, como a Chacina da Páscoa dos judeus, a Inquisição e a escravatura, que não podemos esquecer. Mas, de uma forma geral, Lisboa protagoniza muito daquilo que é Portugal. Miguel Torga dizia que Portugal era “uma coletividade pacífica de gente revoltada” e é um pouco isso que penso também.

Este livro foi publicado há um ano no Reino Unido e nos EUA e chegou a Portugal este ano. Foi escrito sobretudo a pensar nos turistas?
É um livro de História a pensar no turista que vem ou que já esteve em Portugal e quer saber mais. Vem preencher uma lacuna. Os guias turísticos dão uma breve descrição e da história dos locais e acontecimentos, mas não vão além disso. Quando escrevi o livro tinha um público estrangeiro na minha cabeça; daí ter saído primeiro no Reino Unido e nos EUA.

É uma espécie de guia turístico alternativo sobre a cidade de Lisboa?
Pode dizer-se que sim. As pessoas lá fora, regra geral, não sabem muito sobre Portugal. É um país ainda um pouco desconhecido, mesmo na Europa. O meu contributo foi no sentido de trazer mais pormenores daquilo que é Portugal e os portugueses.

Fernando Pessoa dizia que os estrangeiros não conhecerem a História de Portugal. Foi isso que procurou desmistificar ao escrever este livro?
Sinto-me um pouco culpado por ser um correspondente estrangeiro em Portugal e ainda não ter conseguido fazer com que as pessoas lá fora acordem para a realidade portuguesa e para a maneira de ser dos portugueses. Por outro lado, fico com um sentimento de culpa porque agora a cidade está cheia de turistas. Questiono-me se terei alguma coisa a ver com isso. Lisboa agora está na moda e, embora ainda não esteja overlooked, a cidade está a abarrotar com turistas.

É estranho para si que um país que foi em tempos um grande império tenha acabado no quase total esquecimento entre as grandes potências da Europa?
Sim, mas a História de Portugal, quando contada de forma linear, mostra como Portugal chegou até aqui. Portugal, sendo um país pequeno, não conseguiu defender muito daquilo que tinha perante os países maiores. O espaço português foi invadido várias vezes e, dada a sua posição geográfica e o atraso na chegada da Revolução Industrial, a que se associam os acontecimentos e tendências europeias e mundiais, Portugal veio dos gloriosos tempos dos Descobrimentos para aquilo que é agora. Muitos questionam-se porque é que Portugal é hoje um dos países mais pobres da Europa. Respondo que pobre só se for em termos financeiros. Em cultura, é riquíssimo.

Mas, em termos económicos, o que condenou Portugal a um estado de quase permanente recessão?
Sendo Lisboa o grande centro financeiro do país, há uma série de acontecimentos ao longo dos séculos que são como degraus sempre mais descendentes devido às guerras, mudanças mundiais e influências vindas do estrangeiro, que vão definhando o país. Portugal teve muito azar, embora se diga que cada um cria a sua própria sorte. Portugal esteve sempre a lutar contra a sua condição geográfica, que o colocou sempre muito longe do centro da Europa.

Diz que Portugal “tem tentado serpentear por entre as pernas de potências maiores, pela esperteza ou escapulindo-se do seu alcance”. É esta a imagem com que se fica de dois mil anos de História que começam antes da fundação?
Era a única saída que Portugal tinha. Como país pequeno, não ia para uma guerra contra uma grande potência. Portugal foi esperto, até ao possível. Quando chega o ultimato inglês, Portugal é encostado contra a parede. Mas regra geral, Portugal tem conseguido sobreviver entre as grandes potências europeias por ter sido sempre mais esperto, mais flexível e mais “rato”. Mas que convém, porque cada um tem de usar as armas que tem.

O que é que para si, enquanto inglês, o surpreendeu mais nos mais de dois mil anos de história da cidade?
Encontrar os restos humanos do Marquês de Pombal numa salinha de arrumação em Lisboa. Quase ninguém sabe que ele está lá. Obviamente que tem, em sua homenagem, um monumento gigante, na rotunda, mas encontrar os restos mortais dele numa caixinha de madeira no cimo de uma mesa, numa sala de arrumação de uma igreja, com cadeiras empilhadas ao lado, achei estranho. Ainda para mais, sendo ele uma pessoa com um peso tão grande na História de Portugal.

Considera que há partes da História das quais os portugueses evitam falar?
Os portugueses fogem em reconhecer pessoas ou momentos que lhes foram menos agradáveis, como é o caso de Maria de Lurdes Pintassilgo. Está no cemitério dos Prazeres, numa daquelas gavetas na parede, onde não há nada a dizer que está ali a antiga primeira-ministra. Obviamente que foi muito polémica, mas não deixa de ser a primeira primeira-ministra e, até agora, a única mulher a chegar ao cargo. O mesmo acontece com Salazar. Onde estão as referências? Podemos fingir que nos esquecemos dele, mas está em praticamente toda a cidade. Os portugueses têm um bocado de dificuldade em olhar para o passado cara a cara. A escravatura é outro bom exemplo. Quantas pessoas sabem que Portugal foi um dos maiores, se não mesmo o maior país da escravatura? Ou a Inquisição. São duas grandes manchas na História de Portugal e da Humanidade, de que se fala pouco entre os portugueses.

Esses lados mais negros do passado português são mais fáceis de contar por quem está de fora?
Sim, mas sem a intenção de julgar por nada. Cada país tem os seus pontos fortes e fracos e os momentos em que esteve bem e esteve mal. É mais fácil no sentido de contar o passado. Há coisas que se deviam ensinar na escola. A questão da escravatura e da Inquisição são dois bons exemplos. Os portugueses gostam muito de focar os Descobrimentos como a sua grandiosa obra, mas as outras partes, como os massacres e as chacinas que perpetraram, não são faladas. Mas isso aconteceu também com outros países europeus. Foi só há no fim do século passado que os belgas começaram a enfrentar o passado deles no Congo e os ingleses a focar o que fizeram no Quénia. Mas conseguiram superar. A Portugal falta ainda confrontar aquela parte do passado que é pouco confortável.

Sobre a ligação africana a Portugal, diz que “talvez os portugueses precisem de reconhecer eles próprios a sua rica herança africana antes de poderem contar aos outros sobre ela”. O que quer dizer com isso?
A ligação africana a Portugal é uma lacuna que podia ser aproveitada. Conheço muita gente que gosta de Lisboa por causa dessa parte africana e vêm procurar a comida e estabelecimentos desse continente. Aquilo que vêm de África é muito exótico na Europa e as autoridades de turismo em Portugal não aproveitam essas potencialidades.

O Barry vive em Lisboa há cerca de 30 anos. Deu por si a pensar que não conhecia assim tão bem a cidade?
Sim. Há coisas que passam completamente despercebidas. Mesmo aos olhos dos portugueses. Há umas escadas no Martim Moniz, atrás do centro comercial, que não estão assinaladas, mas que são cerca de seis andares com azulejos fantásticos com cenas do Velho Testamento. Na escuridão, numas escadas de madeira, ninguém sabe que está lá. Os lisboetas e o resto dos portugueses não sabem e os turistas muito menos. O mesmo acontece com a estátua de Sá da Bandeira, com a preta Fernanda aos pés, no Cais do Sodré, e toda a história que está por detrás dela. É fascinante. A pessoa vai à descoberta e encontra coisas que são magníficas e que não são aproveitadas.

Fala ainda da opulência no tempo dos Descobrimentos e da destruição de quase tudo com o terramoto de 1755. Portugal teve a capacidade de se regenerar?
Nem por isso. Foi uma coisa impressionante aquilo que o Marquês de Pombal fez. A reconstrução demorou muito tempo, mas não havia maneira de se fazer isso de forma diferente. Depois vieram várias guerras, em resultado daquilo que estava a acontecer na Europa. Nos países maiores, começaram a surgir tendências e movimentos, como a Revolução Francesa e as invasões napoleónicas e a Coroa portuguesa fugiu para o Brasil. Depois houve o atraso na Revolução Industrial, no século XIX, que começou em Inglaterra, mas depois para chegar a Portugal teve de atravessar França, os Pirenéus e Espanha. Portugal sempre foi um bocado atrás da carruagem, simplesmente porque é longínquo no seu próprio continente, o que nunca vai mudar.

A verdade é que nunca mais voltamos a ter um país tão financeiramente rico como na altura dos Descobrimentos.
É verdade, mas não podemos negar que veio muito dinheiro com a entrada na UE.

Mas não conseguimos descolar. O que faltou a Portugal para dar o salto?
Isso tem também a ver um pouco com aquilo que é o carácter português. Quando está tudo bem gasta-se, e depois não há nada. Aliás, durante os Descobrimentos o país estava muito endividado. É impressionante. Portugal estava a contrair empréstimos gigantes da Antuérpia, da Holanda e Inglaterra. Quando os navios que tentavam fazer a rota marítima para a Índia falhavam, tinham de ir pedir mais dinheiro. Depois houve reis que gastaram imenso dinheiro com o Terreiro do Paço e Mafra. Se calhar, Portugal teve também algum azar com a sua classe política e a Coroa Portuguesa. Tivemos reis como D. Dinis, D. Manuel e D. João II, que foram fantásticos, em termos de governação, mas depois tivemos uma série deles que não ajudaram muito à saúde financeira do país.

Depois de “Os Portugueses” e “A Rainha do Mar”, o seu próximo livro será também sobre Portugal e os portugueses?
Ainda não sei, mas estava a pensar em escrever algo sobre o Alentejo. É uma região de que gosto muito e que é totalmente diferente de Lisboa. Mas em Portugal, todo o país é assim. Uma pessoa faz 100 quilómetros e está noutro universo. Portugal, dentro de um espaço tão pequeno – que é de 200 km por 600 – uma pessoa encontra tanta geografia, costumes, comida, pessoas diferentes.

Artigo publicado na edição nº 1993, de 14 de junho do Jornal Económico

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