Quando a UE discutiu, na primeira década deste século, a “constituição” europeia, processo que haveria de terminar com um referendo negativo consagrado pelos eleitores franceses e holandeses, esteve em questão a reverente consagração dos fundamentos judaico-cristãos da construção das diversas europas.

Essas discussões tinham um sentido antes da adesão dos países do bloco de leste e ganharam um outro depois desta incorporação. Se a igreja católica se presenciava como marca central, e a suas derivações no luteranismo ou no anglicanismo, por exemplo, eram seguidas, mas não implicantes da supremacia da primeira, a realidade atual da europa deve perguntar-nos sobre a circunstância de continuarmos a garantir o primado de Roma nas relações com o intemporal.

O cristianismo ortodoxo, que atravessa um sem número de países que integram hoje a União Europeia, merece, das opiniões públicas e dos poderes do pensamento e da ação, uma outra atenção.

Os ortodoxos dizem-se portadores de uma mensagem com dois milénios. Não muito diferentes, em tempo dos que seguem Roma, porque nos primeiros séculos encalçaram a mesma linha, o mesmo caminho dos que hoje elegem Pedro como fundador.

O cisma de 1054, determinante para a segregação ortodoxa, adveio de uma negação do império papal a que se juntou, como acontece sempre nos cismas, uma leitura mais estrita dos dogmas. A infalibilidade do Papa, que nos dias de hoje é irrelevante para Francisco, foi superada pelos ortodoxos com a “não interferência mútua” que só cede, pouco, numa atribuição honorifica das presidências ao Patriarca de Constantinopla.

As igrejas ortodoxas tiveram, ao longo de todo o período de presença comunista na europa, muitas formas de agir e diferentes ordens de relacionamento com os poderes instituídos. Mas a autocefalia que existiu na organização dos fiéis e na relação com o local, ultrapassou cada uma das arduidades e fez garantir a prática religiosa de forma mais fluida quando comparada com a leitura política dos católicos polacos.

Mas que importância tem hoje a Igreja Ortodoxa no mundo em construção nesta Europa fragmentada? A resposta, à partida exigente de análises sobre cada um dos ramos que a integram, é bem mais fácil. Os ortodoxos, com exceção dos seguidores de Cirilo I, patriarca de Moscovo e admirador de Putin, sofrem menos a dimensão publica das suas realidades humanas porque não se afirmam obcecados pela santidade nem mínimos exemplos do ser pecador.

Os mais 300 milhões de ortodoxos são, pois, exemplos de vida e que devem ser olhados pelas restantes confissões? Não achamos que esse seja o caminho. Até porque a mística agregada é bem mais arcaica do que a que nasceu do Vaticano II. E não se reconhecem realidades contemporâneas que afetam hoje as monoteístas? A resposta é muito simples:  todos os escândalos que atravessam igreja romana acontecem, de forma próxima, no múnus ortodoxo.

A leitura sobre a homossexualidade não é unitária. Mas uma parte das igrejas ortodoxas afirmam a igualdade de tratamento pela comunidade cristã e sustentam mesmo a inexistência de qualquer impedimento advindo das sagradas escrituras. Os ortodoxos mais ocidentais rejeitam o estupro homossexual, a prostituição homossexual ou a luxúria decorrente do sexo entre pessoas do mesmo sexo, mas isso é um puro mimetismo com a realidade heterossexual.

E as realidades que se prendem com os crimes de abuso existem, em dimensão semelhante, nas igrejas ortodoxas?  Não é possível identificar a dimensão do grave problema que hoje se vive, mas ele não deixa de afetar, também, os ortodoxos. Há, contudo, uma outra realidade que simplifica o trabalho da justiça perante cada circunstância – a inexistência de concordatas e de um direito canónico que vincule avassaladoramente.

Não havendo um Papa dos Ortodoxos o que agrega cada um dos espaços de crentes? Em boa verdade a agregação faz-se muito pela imutabilidade dos ritos e pela flexibilidade da relação individual. A teologia estruturada é menos sujeita a interpretações e menos implicada pela vida do dia a dia. Se numa visão elitizada pela razão esta circunstância nos parece incompreensível, porventura será mesmo a sorte dos ortodoxos.

Talvez por isso o patriarca de Constantinopla seja prudente na aceitação da visão ecuménica dos últimos três bispos de Roma e talvez o patriarca de Moscovo seja mais ladino que os restantes. Bartolomé I, o primeiro entre iguais, que não vai além de uma influência discreta que é sempre posta em causa nos assuntos políticos como acontece com a concessão de autocefalia aos ortodoxos da Ucrânia, sabe que tem mais a perder do que a ganhar com uma associação excessiva à supremacia do poder vaticanista e a sua disponibilidade tem sido tanta que não vai além de uma simpatia acrescentada a cada novo pontífice que se elege na capela Sistina. Ortodoxos e Católicos Romanos continuarão nas suas bitolas apartadas ainda por lagos séculos.