A blockchain é uma tecnologia que dá vida à auto-execução ecossistémica, um conceito fundamental já aqui referido anteriormente. Mas até que ponto é disruptiva a transformação originada pela blockchain? A resposta está nos ecossistemas.
Um ecossistema económico é composto por um conjunto de organizações, todas interrelacionadas entre si. Para avaliarmos o impacto da blockchain na vida das empresas, e também nas nossas vidas pessoais, temos de olhar para o potencial disruptivo da auto-execução ecossistémica, ou seja, para o que acontece a cada ecossistema sob a influência de pelo menos uma blockchain.
Será que a blockchain, como exemplo de transformação digital, tem um potencial disruptivo na linha das Big Techs? Ou será que esse potencial é várias ordens de grandeza superior, dando assim origem a uma nova revolução industrial?
Até há relativamente pouco tempo, as tecnologias de informação foram sempre aplicadas a cada organização em particular, sendo a disrupção uma consequência da influência de uma organização no seu mercado, como tem sido o caso das Big Techs. Porém, com a blockchain, a disrupção é ecossistémica na sua génese, assim, em vez de cada ecossistema ser a consequência do equilíbrio das organizações que o constituem, são as regras do ecossistema nascente a fazer-se sentir nas organizações, seja nas novas, seja nas já existentes, incluindo no Estado.
Assim, se no passado era preciso ver uma empresa afirmar-se no mercado até atingir o nível de influência suficiente para que a disrupção se fizesse sentir, com a auto-execução ecossistémica, é a indústria inteira a sentir de imediato a disrupção, com impacto potencial em todas as organizações que a compõem. É esta inversão no sentido da influência que significa um corte abismal com o passado, e é o que se pretende agora discutir.
Também já aqui referimos a forma inovadora de como o valor económico é criado para todos os envolvidos no contexto da auto-execução ecossistémica. Falta agora explicar porque estamos no limiar de um cataclismo económico que pode ser benéfico ao nosso país, saibamos nós abraçar as mudanças inelutáveis subjacentes a esta nova economia. Mas afinal o que é uma Revolução Industrial?
Uma Revolução Industrial é o resultado de um reordenamento profundo nos métodos de produção e da economia como um todo, ou seja, em todas as indústrias. Há várias autores e opiniões sobre o tema, pelo que vou adoptar a mais simples.
As primeiras três Revoluções Industriais aconteceram com um século de intervalo. A primeira resultou da invenção da máquina a vapor no séc. XVIII, e a segunda teve origem na entrada em cena do petróleo e da electricidade no séc. XIX, e finalmente as tecnologias de informação nos passados anos 60. Em qualquer uma destas três revoluções, os efeitos da disrupção demoraram cerca de uma geração até se fazerem sentir, com a alteração substancial de todo o tecido económico e industrial. Como tudo está a acelerar, parece que a partir de agora vamos ter pelo menos duas revoluções por século.
No entanto, as disrupções não acontecem sem dificuldades, e a adopção da blockchain não é excepção. Num estado de Direito nada de relevante pode acontecer aos ecossistemas económicos sem que haja uma (r)evolução significativa do direito e da regulação. A visão libertária de que os novos ecossistemas são desprovidos de leis não é razoável, pois nós não saberíamos viver numa economia sem identificação jurídica. Então o que nos dizem as leis mais recentes sobre a aplicação da blockchain às várias áreas da economia?
Infelizmente, os primeiros passos têm sido demasiado tímidos para fazer a diferença, pois os reguladores têm estado preocupados em proteger os investidores de serem enganados. Por exemplo, quando se obriga um criptoactivo a ficar na custódia de uma qualquer entidade, para com isso se conseguir aplicar as tradicionais leis da regulação a todos os direitos já desmaterializados e geridos pela informática tradicional, está a subverter-se o poder da auto-execução ecossistémica da blockchain. Não é, portanto, assim que se vai mudar o mundo.
Porém, a tímida legislação actual tem os dias contados pois já há geografias no caminho certo, e, mais tarde ou mais cedo, a Europa vai ter de legislar a sério para não ficar para trás. Há, aliás, pistas em como já se está a trabalhar para isso na nossa geografia, como é o caso da EBSI – European Blockchain Service Infrastrcuture, a qual vai viabilizar a desmaterialização na blockchain dos direitos que careçam de identificação jurídica. É este o tipo de exemplos que vai impulsionar a Revolução Industrial em curso.
Da mesma maneira que a electricidade em si não foi a revolução, mas sim os seus efeitos, com a blockchain vai ser igual, mas desta vez não vai demorar o tempo de uma geração porque as sociedades aprenderam a aprender muito mais rápido, encontrando nas redes sociais o catalisador-mor dessa aprendizagem. Mas porque é a auto-execução ecossistémica tão disruptiva ao ponto dar origem a uma Revolução Industrial?
Em primeiro lugar, resolvida que esteja a identificação jurídica, e resolvida que esteja a legalidade da desmaterialização do direito com a Res Digitales, vamos assistir ao redesenho de todas a indústrias passíveis de desmaterialização, ou que contenham camadas de informação desmaterializáveis.
Serão todas? O exemplo da indústria financeira é paradigmático e é por isso que o aparecimento das criptomoedas é tão disruptivo. À partida, uma criptomoeda não carece de custódia de nenhuma entidade em particular, e a respectiva blockchain oferece os seus serviços a custo zero. Se a coisa pega nesta indústria, deixamos de precisar de bancos para gerir os nossos investimentos, pagamentos, transferências, garantias e sabe-se lá mais o quê. Isto não quer dizer que os bancos vão desaparecer, mas que os ecossistemas vão ser sofrer alterações disruptivas como nunca sofreram, disso não restam dúvidas.
Quem diz informação financeira, diz qualquer outro tipo de informação, incluindo conteúdos, a qual passa a ter vida própria e coisificada na Res Digitales.
Portanto, esta 4ª Revolução Industrial já começou com a blockchain e é mais disruptiva que a própria invenção do computador e da internet. Vai até ser mais rápida e profunda que a anterior, pois, desta vez, cada mudança afecta ecossistemas inteiros cobrindo várias indústrias ao mesmo tempo, e não as organizações uma a uma.
Está assim na altura de começar a pensar a sério no futuro de cada ecossistema e no papel de cada empresa actual nesta cadeia de valor desta nova economia. Que serviços vão passar a ser pura infra-estrutura e bens públicos? Que serviços deixam de fazer sentido? Que novos serviços vão aparecer? Qual o papel das criptomoedas na criação e prosperidade dos novos ecossistemas? Que estratégias de sucesso implementar para aproveitar a auto-execução ecossistémica?
Estamos à porta da 4ª Revolução Industrial. Só a vamos conseguir aproveitar quando a legislação e a regulação estiverem preparadas para libertar o sector financeiro da custódia dos dados, quando a identificação digital de base criptográfica e pseudo-anónima da blockchain também significar identificação jurídica, e quando a auto-execução da Res Digitales fizer jurisprudência junto dos tribunais. Há muito trabalho a fazer e começa por ser sobretudo jurídico. O impacto económico positivo só vem depois. @legisladores e reguladores: vamos a isto?
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.