Muito do que o candidato à presidência dos EUA Joe Biden pensa sobre a política externa norte-americana está expresso num artigo da sua autoria publicado na “Foreign Affairs” (março/abril de 2020). Biden compromete-se a ressuscitar o projeto da hegemonia global americana: os EUA “têm de provar ao mundo que estão preparados para liderar outra vez”.

Mas, para concretizar esse projeto, Biden precisa de aliados, e dos europeus em particular. Foi nesse espírito que manifestou o desejo de “apagar as más memórias causadas pela postura confrontacional dos EUA com os europeus e substituí-la por relações benignas”. Se Biden ganhar as eleições, não será de descartar a possibilidade de o projeto da NATO global ser reavivado, e de os europeus serem pressionados para alinharem através da Aliança na competição militar com Beijing, à semelhança do que Trump está a tentar fazer. O esforço de captação de aliados estender-se-á à organização de uma “Cimeira Global da Democracia” para congregar as democracias e com elas forjar uma agenda comum.

Entretanto, Biden declarou que se distanciará de algumas das políticas mais controversas de Trump. Com Biden na Casa Branca, os EUA regressarão ao acordo de Paris e à Organização Mundial de Saúde, ao controlo de armamentos e ao JCPOA. O sonho de mudança de regime no Irão – tão querido de John Bolton – será para já posto de parte.

Biden avança ainda com uma série de medidas “avulsas”. Promete terminar com o apoio militar à Arábia Saudita, o maior cliente de material bélico dos EUA, na sua campanha militar no Iémen. Fez também questão de salientar que não vinculará a assistência militar a Israel a decisões do governo israelita com as quais possa discordar, como sejam, por exemplo, a anexação da Cisjordânia.

Algumas das propostas de Biden não passam de exercícios inconsequentes. Mostra-se, por exemplo, incomodado com a falta de transparência no sistema financeiro e com a extensa lavagem de dinheiro estrangeiro, esquecendo-se de que foi senador pelo Delaware durante seis mandatos consecutivos, entre 1973 e 2009, por sinal um dos maiores centros mundiais de lavagem de dinheiro e sinónimo de corrupção.

Biden evitará envolver os EUA em conflitos que exijam o emprego de grandes contingentes, preferindo em seu lugar usar Forças Especiais e apoiar os parceiros contra inimigos comuns proporcionando-lhes “Inteligência”. Se for eleito, fará regressar a maioria das tropas norte-americanas destacadas no Afeganistão e no Médio Oriente, nada que Trump não esteja também (a tentar) fazer. Por genuíno arrependimento ou oportunismo de ocasião, Biden tenciona colocar um ponto final nas forever wars de que no passado foi um ardente apologista.

Relativamente à Rússia, Biden é muito claro sobre o que pretende fazer, nomeadamente em matéria de ingerência nos assuntos internos da Federação russa, não excluindo a possibilidade de uma operação de mudança de regime, em tudo semelhante a outras realizadas na vizinhança da Federação russa, como na Ucrânia no início de 2014. Biden promete “apoiar a sociedade civil russa, que repetidas vezes se levantou corajosamente contra o regime autoritário e cleptocrático do presidente Vladimir Putin”.

A implementação da grande estratégia de Biden chocará inevitavelmente com a presença de dois elefantes na sala: a China, o centro de gravidade da sua ação estratégica, e o impacto da globalização na sociedade norte-americana. Duas questões centrais se colocam: que tipo de relacionamento pretende Biden adotar com a China, e que medidas pensa tomar para mitigar as consequências nefastas da globalização na sociedade americana. As respostas dadas a estas questões cruciais não têm passado de declarações de princípios.

É insuficiente afirmar que “os EUA têm de ser duros com a China”. Há que explicitar de que modo, que estratégia vai abraçar e que medidas tomará. Não basta dizer que pretende “construir uma frente unida de aliados e parceiros dos EUA para enfrentar a China”, uma ideia pouco original que não difere muito da nova “Aliança de Democracias” formulada pelo secretário de Estado Mike Pompeo.

Mas o que significa concretamente para Biden “dureza com a China”? Continuar com a guerra comercial desencadeada por Trump, mantendo a política de tarifas alfandegárias sobre produtos chineses? Ou reverter as decisões de Trump que levaram à erradicação da Huawei, ZTE, Tik Tok e ao fim da operação do WeChat nos EUA, apostando noutras medidas? Vai promover o decoupling de empresas americanas e chinesas, aconselhar a saída de empresas da China e a repatriação da sua atividade para os EUA? Ou será que Biden tem algo diferente em mente? Vai escalar o conflito alargando a confrontação a outros domínios, para além da guerra comercial?

As indefinições no discurso de Biden alargam-se ao modo como pretende lidar com a globalização. Que medidas tenciona tomar para diminuir as desigualdades e melhorar as condições de vida da classe média americana?

Propõe uma “política externa para a classe média”, mas não explica o que isso significa nem que implicações pode ter. Biden não consegue explicar convincentemente como a sua visão para a América vai reduzir as desigualdades e melhorar as condições de vida da classe média norte-americana. O argumento de que a “política comercial começa em casa, e que o fortalecimento da classe média requer um enorme investimento em infraestruturas” sugere a incorporação no seu pensamento de elementos da narrativa de Trump.

É com perplexidade que lemos Biden clamar pela necessidade de se “garantir que as regras da economia internacional não sejam manipuladas contra os Estados Unidos”, uma vez que foram os EUA que nos últimos 70 anos lideraram a formulação e redação das regras e dos acordos, que definiram as normas do comércio internacional. Clamar que a liderança desse processo deve continuar a pertencer aos EUA, ignorando as significativas alterações ocorridas na correlação de forças internacional, não augura nada de bom. É um projeto que não tem em consideração os interesses de novos protagonistas, que reclamam uma distribuição mais equitativa de poder.

Ao não considerar estes novos dados, Biden apresenta-nos uma grande estratégia de confrontação, de soma nula, exigindo a total subordinação da China, um projeto irrealista muito difícil de concretizar. Nesse aspeto não é essencialmente diferente da de Trump. Biden pretende um regresso a um passado em que os EUA foram felizes, mas que é irrepetível porque as condições internacionais não lhe são favoráveis como já foram e o tempo não joga a seu favor. Ao apostar nas mesmas fórmulas que trouxeram os EUA à situação atual, Biden e a sua entourage mostram que não são a nova elite de que a América e o mundo tanto necessitam.