Para assinalar 100 dias como presidente, Joe Biden apresentou a proposta de fazer regressar a taxa marginal de imposto sobre os 1% mais ricos da população a 39,6%, repondo o valor praticado durante a presidência de George W. Bush e contrariando Trump que cortara esta taxa para 37%.

Biden justifica esta medida asseverando que contribuirá para financiar um conjunto de outras tantas que fazem parte do seu plano de recuperação e que assentam sobretudo em apoiar a classe média americana, revestindo-a de uma mensagem clara sobre quais devem ser as prioridades da política económica e social. Complementarmente, anunciou que pretende passar o imposto sobre os lucros das empresas (o equivalente ao nosso IRC) de 21% para 28%, aumentar taxas sobre mais-valias e impostos sucessórios.

Estas políticas representam uma rutura inequívoca com o discurso político anterior centrado na ideia de que o favorável aos americanos seriam sobretudo menos impostos.

Como a generalidade dos americanos, Biden é principalmente pragmático. Não receia assumir que tem em mãos um problema para ser resolvido e que este deve ser atacado com todos os meios disponíveis, ainda que estes sejam contrários àquilo que um americano médio tenderia a defender, como a intervenção estatal. Talvez esta iconoclastia fundamente a atual inesperada onda de apoio à sua política de cariz keynesiana que tem sido possível verificar até nos comentadores mais liberais.

Biden dá ao mundo em geral e à Europa em particular uma lição de economia política, colocando na linha da frente das suas ações os fundamentos do Welfare State, tão propositadamente abafados por anos de repetição insistente dos ideais do liberalismo. O American familiy plan repõe, com todas as letras, o primado do Estado de bem-estar, identificando um conjunto de bens de mérito que um governo moderno tem a obrigação de assegurar.

A sua aposta em creches e propinas gratuitas, subsídios para baixa médica e apoio à família, isenções fiscais para os pais, aos quais se junta uma reconstrução de transportes públicos arruinados e a criação de habitação pública, evidenciam um reconhecimento da importância das famílias enquanto motor da recuperação económica, quer enquanto força de trabalho, quer como dinamizadores da procura.

Revela-se mais uma vez nos antípodas de Trump que diminuía cada cidadão americano ao tratá-lo como uma vítima de um sistema no qual o próprio se movia à vontade e tirara partido para singrar, incitando o ódio contra a diferença para disfarçar a sua inoperância perante os problemas que fora eleito para combater.

Na senda de Roosevelt, a nova visão da política americana combina investimento público tradicional em capital físico com investimento em capital humano onde este é mais necessário. Este é, portanto, um plano para relançar a classe média, onde finalmente há coragem para assumir que a desigualdade deve substituir a inflação como prioridade da política macroeconómica. O plano é tão inusitado que Biden faz, muito provavelmente, as reformas que o mais radical Bernie Sanders gostaria de ter podido fazer ou, mais provavelmente ainda, que Bernie Sanders não teria tido enquadramento político suficiente para fazer.

Na sua tentativa de reparar a imagem dos Estados Unidos como líder mundial, agindo como país modelo, Biden vai mais longe, ousando propor um plano internacional de desenvolvimento onde inclui o levantamento das patentes sobre as vacinas para assegurar a imunidade à escala internacional (uma proposta curiosamente olhada com desconfiança, deste lado do Atlântico).

Este lado do seu projeto é talvez demasiado ambicioso, porque com contornos políticos que não controla tão bem, mas é o plano de quem reconhece que só se lidera verdadeiramente quando se garante o bem-estar dos parceiros económicos. Revela uma perceção de que a dinâmica americana dependerá também em larga escala da procura global que só atingirá o pleno quando o planeta como um todo regressar à normalidade.

O timing em que o faz, com a Índia a atravessar uma crise sanitária gravíssima em resultado da Covid-19, revela ainda sensibilidade perante a importância da Ásia na dinâmica de crescimento mundial das próximas décadas, contrastando uma vez mais com o seu conflituoso antecessor e dando, significativamente, um exemplo ao mundo.

Ora, o que é de louvar em Biden, é exatamente o que tem pecado por defeito no velho continente. A Europa continua a manter a timidez quando se trata de aprofundar o velho plano audacioso que há 71 anos se consubstanciava pela assinatura do Tratado de Schuman e lançava as bases do seu projeto de integração.

Na sua falta de perspetiva e sobranceria, a Europa parece esquecer-se que é na promoção do bem-estar dos seus cidadãos que reside a força do seu projeto supranacional. Dada a excecionalidade histórica do momento que atravessa, talvez fosse possível, por uma vez, equacionar mostrar a sua superioridade ao ter a humildade de apreender as lições que lhe chegam do outro lado do Atlântico.