Bill Gates, um dos homens mais ricos do mundo, tem-se desdobrado numa série de entrevistas um pouco por todo o mundo. A razão? Está a lançar um novo livro: “Como evitar um desastre climático”. Anuncia também que vai mobilizar a sua atividade como filantropo para combater as alterações climáticas, objetivo que o próprio afirma, “vai ser mais difícil do que qualquer outra coisa que a humanidade alguma vez teve de fazer”.

O movimento climático, após décadas de mobilização, não parou, mesmo em tempos de pandemia. A entrada em jogo de uma das pessoas mais poderosas do mundo transmite assim um novo fôlego para resolver a crise climática, certo? Errado.

Gates não é estreante em intervir em causas políticas. Em 2008 afastou-se da gestão da Microsoft e passou a dedicar-se à filantropia com a sua fundação. À partida, as credenciais de Gates – marcadas pela promoção de interesses privados – já bastariam para desconfiar do seu ativismo, e o que diz sobre as alterações climáticas não é animador.

Gates abre pela questão tecnológica. Investigação e inovação para as tecnologias que permitirão reduzir as emissões de gases com efeito de estufa. Quanto à energia nuclear – na qual o próprio é investidor – afirma que a fissão nuclear poderá ser chave, resolvendo o problema da irregularidade das energias renováveis.

O ênfase na tecnologia é tão vigoroso que chega mesmo a debruçar-se sobre geoengenharia, estudando bloquear o sol para reduzir as temperaturas, um processo com riscos nefastos à escala das alterações climáticas, digno de um vilão de banda-desenhada.

O destaque vai para as omissões de Gates. Sobre as emissões dos países do sul global, omite que tanto histórica como atualmente, estes têm uma responsabilidade reduzida, e que boa parte serve para fornecer as importações dos países do norte global.

Crucialmente, omite a principal força de bloqueio no combate às alterações climáticas: as grandes empresas com interesses nos combustíveis fósseis. Estes são os grandes perdedores de uma transição energética que ponha termo às emissões. Em primeiro lugar, as empresas que extraem combustíveis fósseis, que veriam valores de ativos a colapsar. Em segundo vários outros setores empresariais, como parte do setor de transportes, que depende de consumos ineficientes para o seu lucro e a banca, que emprestou biliões a estas empresas.

Fica então por vincar que foram as grandes petrolíferas quem, durante décadas, mobilizou o seu poderio para espalhar a desinformação sobre a necessidade de deixar os combustíveis fósseis para trás. São estas quem hoje ativamente bloqueia as iniciativas políticas que colocariam em causa o seu aparato.

O bilionário Gates, chuta para o lado a necessidade de discutir o papel de outros bilionários e chega mesmo a criticar o movimento climático. Reduz as táticas de desobediência civil a um desperdício de energia e desvaloriza Greta Thunberg, afirmando esperar que a ativista sueca não esteja a falhar a educação.

Foi precisamente devido aos esforços do movimento climático que a transição energética passou para o topo da agenda, à qual agora Gates se anexa e, como não poderia deixar de ser, utilizando o poderio da sua fortuna de mais de 100 mil milhões de dólares.

É olhando para o movimento climático que se destaca mais uma omissão vital, Gates aponta 2050 como o ano para atingir a neutralidade carbónica – ao invés de 2030 como boa parte do movimento de bases – também omitindo convenientemente as drásticas consequências desta disparidade de 20 anos.

Na melhor das hipóteses, Gates despolitiza e tecnocratiza as alterações climáticas, não tocando no aparato responsável. Na pior, redu-las a um pretexto para negócios.

A tarefa de concretizar a transição energética é ambiciosa, e parte do percurso passa por progresso tecnológico para conseguir armazenar energia elétrica e fazê-la chegar a certos setores onde tal é desafiante. No entanto, essas soluções só serão eficazes se servirem para deixar os combustíveis fósseis debaixo do solo, e isso esbarra com o capitalismo fóssil.

Gates não precisa de uma conspiração para contaminar o combate contra as alterações climáticas com um discurso neoliberal, basta-lhe colocar o poder da Bill & Melinda Gates Foundation no centro da agenda. Gates naturalmente manter-se-á fiel à sua classe de bilionários, cuja preocupação é o custo que a resolução da crise climática terá para os próprios, e não quanto custará a toda a humanidade manter o business as usual. Resta saber se tal lhe será permitido.