Um atleta que pretenda alcançar o recorde da sua especialidade desportiva tem de precaver antecipadamente os mínimos que o permitam participar nos jogos Olímpicos. Todos os atletas sabem que sem a obtenção de bons mínimos jamais conseguirão ambicionar chegar aos máximos. Esta ideia simples pode ser utilizada, com as devidas precauções, como analogia para os princípios da constituição do Estado social.
Uma das conquistas fundamentais do Estado social foi a de garantir a universalidade no acesso aos serviços públicos (de educação e de saúde…) e no direito à proteção e à segurança social. Esta condição tornou-se imprescindível para assegurar os níveis de coesão social considerados decentes. De entre os vários modelos de Estado social, foi no designado social-democrata que mais se avançou nas políticas de proteção social para todos, em que diversos apoios passaram a ser atribuídos “como um direito” sem a necessidade de averiguação da condição de recursos do beneficiário.
Assim, nas várias áreas de intervenção, instituíram-se mínimos a que qualquer pessoa, independentemente da sua situação socioeconómica, teria acesso. Todavia, a estipulação de mínimos não era um fim em si mesmo, pelo contrário, esta significava uma dupla garantia: primeiro, que ninguém em qualquer circunstância poderia ficar sem apoio; segundo, que seria função dos vários sistemas e serviços públicos potenciar as oportunidades de vida e aprofundar o bem-estar social. Ou, dito de outro modo, só assegurando bons mínimos de proteção social é que uma sociedade conseguiria almejar os seus máximos em termos de coesão e equidade social.
Contudo, como é sabido, desde os finais dos anos 70 do século passado, estes princípios básicos têm estado sob forte pressão por intermédio de políticas de índole liberal, cuja atuação incidiu particularmente na eliminação ou na forte limitação da universalidade. Este desmantelamento continuado deu-se, por exemplo, pela via da privatização parcelar de alguns sistemas e serviços públicos, ou pela delegação de responsabilidades e competências para organizações não públicas.
O roteiro destas políticas mudou claramente de premissa, na medida em que o enfoque passou a ser a diferenciação e a seletividade dos grupos vulneráveis, considerando que a função fundamental do Estado social era a de assistir os mais necessitados. Um dos instrumentos técnico-administrativos utilizados para efetivar esta política foi a de sujeitar grande parte das prestações sociais a condição de recursos, que, basicamente, significa a definição de critérios de elegibilidade para quem tem direito ou não a beneficiar dos apoios.
Esta tendência generalizou-se, com maior ou menor intensidade, nos diversos modelos de Estado social, representando uma alteração profunda sobre o paradigma anterior. Apesar da condição de recursos fazer sentido em diversos tipos de prestações, esta levanta alguns problemas que certos autores têm questionado. Desde logo, é conhecido que nem todas as pessoas que têm direito a determinados apoios os reclamam, o que pode provocar desequilíbrios na cobertura e até agravar as desigualdades. Em segundo lugar, a alteração dos critérios de condição de recursos é muito vulnerável às conjunturas e maiorias políticas, como sucedeu no passado recente.
Mas a principal razão é que a generalização do uso da condição de recursos recentra o debate e a política em torno da equação sobre quais são os mínimos mais adequados e eficientes, descurando o horizonte dos máximos. A este respeito, a austeridade baseou-se precisamente nesta contínua reavaliação sobre os mínimos dos mínimos. Por isso, no atual momento histórico, em que se está a tentar fechar a porta da austeridade, a social-democracia tem de se questionar sobre o seu próprio legado e perceber que para encerrar decisivamente esta porta não só não pode continuar a descurar, como terá de retomar alguns princípios de universalidade que tanto consenso geraram no passado.