Todas as sociedades assentam num acordo, mais ou menos livre e esclarecido, entre os seus membros. Esse acordo (pacto, contrato, constituição) tem várias dimensões, não somente jurídicas e administrativas, mas sobretudo políticas e existenciais, ao estabelecer as bases para a contínua coexistência dos membros da comunidade a partir de um corpo comum de valores, ambições e vontades.

O evento e consequente desenrolar do Brexit tem colocado em risco o acordo constitucional do Reino Unido, tal a indefinição existente sobre qual a verdadeira vontade da comunidade política britânica. Esta polarização da sociedade civil, que divide opiniões, gerações e regiões, tem-se manifestado de forma evidente nos seus representantes políticos. Basta assistir ao espetáculo semanal na Casa dos Comuns — um exemplo fascinante de dinâmica constitucional in loco, transmitido em modo “live stream” —  para se ver a extrema sensibilidade do tema e as complexidades que levanta para cada partido com assento parlamentar.

Não tem sido possível encontrar consensos e adotar posições comuns. De certa forma, o facto do Parlamento britânico só ter conseguido, dentro das várias votações que decorreram na última semana, aprovar um pedido de extensão para a saída demonstra bem a dificuldade das divisões inter e — crucialmente — intrapartidárias, sobretudo dentro do partido Conservador e do partido Trabalhista.

A questão que se coloca agora é a de saber se uma extensão do momento de saída permitirá uma melhor definição — ou redefinição — da vontade britânica (através, por exemplo, de uma nova proposta de acordo, agora apoiada por uma maioria dos deputados). No entanto, dada a incerteza presente, e tendo em conta o diminuído poder do governo de Theresa May, já muito desgastado, parece difícil que a solução, qualquer que ela seja, não passe por um novo plebiscito popular. Plebiscito esse que servirá ou para encontrar uma nova solução parlamentar e governativa, ou para clarificar de forma mais contundente a vontade popular quanto ao tema.

Os poderes da União Europeia e dos restantes Estados-membros são, neste momento, algo limitados. Não parece existir interesse numa saída desordenada, mas ao mesmo tempo não há grande margem de negociação e abertura após o consenso alcançado no último acordo. O que parece é que este é um processo que está mais nas mãos do Estado que abandona do que dos Estados que ficam. O recente acórdão do Tribunal de Justiça sobre a possibilidade do Reino Unido desistir do processo veio fortalecer essa ideia.

Cabe, assim, aos europeus do continente assistir ao desenrolar dos acontecimentos do outro lado da Mancha e à reformulação do contrato social britânico, cujas consequências ainda estão longe de se vislumbrar.