A importância e o impacto do Brexit, nas próximas décadas, justificam uma reflexão profunda. Muito se tem discutido sobre esta matéria e muitos cenários têm sido traçados. É importante, por isso, perceber como chegámos aqui. Convém começar por recordar que, até hoje, não existiu nenhuma tradição de referendos no Reino Unido, dado apenas terem sido realizados três. Em 1975, sobre a adesão à Comunidade Europeia, em 2011, sobre o sistema eleitoral e finalmente, em Junho de 2016, sobre a saída do Reino Unido da União Europeia (UE).

No referendo sobre o Brexit, 52% dos votantes decidiram pela saída e 75% dos actuais deputados britânicos votaram pela permanência. Temos, pois, um peculiar caso de democracia parlamentar em colisão com a democracia directa.

O Brexit teve origem numa manobra política do então primeiro-ministro conservador David Cameron, que pretendia o apoio do UKIP (Partido da Independência do Reino Unido) para a sua reeleição. Acontece que o UKIP exigiu a Cameron a realização de um referendo sobre a permanência do Reino Unido na UE, alegando que era imprescindível que os eleitores fossem chamados a referendar a permanência na UE. Segundo o UKIP, a soberania do Reino Unido em matérias tão distintas como a economia e a emigração, estava em causa e não podia ser a Europa a “comandar” o Reino Unido.  Cameron devia estar convicto que a permanência venceria e acedeu. Na altura, teria sido mais fácil explicar ao UKIP e aos eleitores britânicos que Bruxelas não “existe”.

Que Bruxelas materializa as decisões políticas dos governos democraticamente eleitos e que naquela cidade reúnem frequentemente (Conselho, Presidência do Conselho, Comissão, Eurogrupo, Comité das Regiões, Parlamento) e tomam decisões conjuntas, nas quais os respectivos eleitos do Reino Unido sempre participaram, sem excepção,  nos últimos 46 anos, em Bruxelas. Já é tempo de acabar com o mito de Bruxelas. Bruxelas não decide. Em Bruxelas, decide-se. E Cameron tinha a obrigação de ter colocado os valores éticos e políticos à frente do eventual apoio do UKIP (que recorde-se teve cerca de 13% e 2% dos votos nas legislativas de 2015 e 2017, respectivamente e obteve 3,2% nas Europeias deste ano), contudo não o fez. Bruxelas, até ao limite do esforço politico, económico e diplomático, concedeu tudo ao Reino Unido, tudo tolerou e inclusive aceitou, durante anos, a não adesão à moeda única e ao espaço Schengen.

A saída do Reino Unido é unilateral e, até ao fim, a UE esforçou-se pelas negociações para a permanência. A partir de 2018, já pouco havia a fazer e o papel de Michel Barnier foi crucial para uma saída digna para ambas as partes. Quando a política nada mais conseguiu e saiu de cena, foi a vez da diplomacia concluir o “requiem” da saída do Reino Unido.

Ainda é prematuro avaliar os danos directos e colaterais do Brexit, que vão ser profundos. No imediato, existe o problema da fronteira entre a Irlanda e a Irlanda do Norte, o risco da Escócia ser uma nova Catalunha, a eventual desvalorização da Libra, bem como a deslocalização de grandes empresas para o continente europeu.

No caso de Portugal, existem consequências directas e imediatas. Para já, uma assinalável perda nos fundos e uma contribuição líquida para o orçamento da União Europeia. Noutras vertentes, como o turismo, cuja importância económica tem sido quase inesgotável para Portugal, como vai ser lidar com a perda de poder de compra dos britânicos?

Não deixa de ser curioso e digno de registo, que o mais antigo operador de viagens do mundo, Thomas Cook, tenha entrado em insolvência em 2019. Por outro lado, em Londres, uma das cidades mais caras do mundo, a desvalorização do outrora crescente sector imobiliário, já vai em mais de 20%. Pode ser só uma coincidência, mas quando as coincidências começam a somar-se…

Até hoje, há uma pergunta que ninguém foi capaz de responder, mas que o negociador-mor da UE, Michel Barnier, já verbalizou e não obteve resposta: o Brexit serve a quem? Quem ganha com o Brexit? Nas várias dimensões do Brexit, há um e um só resultado: todos perdemos. A Europa, sem o Reino Unido, fica manifestamente mais frágil, mais pobre e perde força económica.

A impressão que fica é que estamos a assistir à construção do vazio, ao desmoronamento do pilar inquebrantável que foi o Reino Unido desde 1973. Até o insuspeito, mas agora famoso ex-speaker da Câmara dos Comuns, Bercow, afirma que é o maior erro da política externa britânica desde a II Guerra.

No futuro, veremos, no pós-Brexit, se os problemas do Reino Unido se resolvem com a saída da UE. Penso que hoje ninguém acredita, nem mesmo os britânicos, a favor ou contra o Brexit, que as questões da emigração, economia, competitividade possam melhorar ou que a inexistência de contribuição do Reino Unido para o orçamento da UE possa catalisar a estagnação conjuntural da economia britânica. Até porque, a partir de 2020, a responsabilidade já não poderá ser de Bruxelas, supondo que o Reino Unido abandona a UE em 2020, e aqui a palavra “supondo” adquire uma nova e curiosa dimensão, quem vai ser o próximo alvo do UKIP e dos restantes leavers (defensores da saída do Reino Unido)?

Na língua portuguesa, o pretérito imperfeito do indicativo refere-se a um facto ocorrido no passado, mas que não foi completamente concluído, expressando, assim, uma ideia de continuidade e de duração no tempo que nem mesmo as próximas eleições legislativas, a 12 de Dezembro, irão certamente mudar. Também pode ser utilizado, na narrativa política, com sentido de futuro do pretérito, para indicar uma acção coerente que seria consequente de outra que acabou por não acontecer. Penso que não haverá melhor descrição para o Brexit.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.