Eça de Queiroz descreveu Shakespeare como o maior criador de almas, capaz de retratar o “homem livre, colocado na livre natureza, entre as livres paixões.” Mas, se ainda fosse vivo, William Shakespeare teria dificuldade em retratar a sua nação orgulhosa no tempo presente, à beira de uma crise nacional que ameaça a sua identidade e lugar altivo na História.

Como poderíamos descrever a tragédia do Brexit, recorrendo às figuras imortais criadas pelos dramaturgos ingleses desde a Renascença, como John Webster, Christopher Marlowe ou Shakespeare, e que ainda hoje ilustram a natureza humana com toda a sua ferocidade?

Theresa May possui as qualidades de uma Duquesa de Malfi, criação de John Webster, uma duquesa viúva que ganha poder e independência. Ao recusar submeter-se ao papel imposto pela sociedade patriarcal, desencadeia a crueldade dos seus irmãos que a tentam manipular e levar à loucura. May está aprisionada nas garras de uma elite masculina iludida que a tem permanentemente colocado numa posição impossível para, no fim, a abandonar de forma cobarde.

Boris Johnson entra no início da tragédia do Brexit como rei Lear. O rei que, num assomo de vaidade e arrogância, divide o seu reino entre as suas três filhas. Não faltam a Boris Johnson uns laivos de Macbeth, o representante por excelência da ambição política a todo o custo. Mas, ao contrário de Lear, que vai ganhando lucidez e majestade ao longo do seu tormento, e ao contrário de Macbeth, que assume até ao fim as consequências da sua tomada de poder, Boris é vítima da sua própria visão ambiciosa que o leva a viver numa fantasia idílica, muito à semelhança da fantasia encenada em “Sonho de uma Noite de Verão” (não por acaso, Johnson alega na sua carta de demissão que o sonho do Brexit está a morrer).

Rodeados de uma imensa galeria de Rosencratzs e Guildensterns, esta é uma peça onde não faltam Iagos traidores que manipulam tudo e todos (Nigel Farage) e Brutus modernos (Michael Gove) que conspiram na sombra facadas nas costas. Para todos eles, o Brexit é a porta para um novo mundo repleto de oportunidades e esperança. Mas em que pé ficam as figuras da oposição como Jeremy Corbyn? Num pé vacilante e inseguro, como o príncipe Hamlet da Dinamarca.

A oito meses de deixarem de fazer parte da União Europeia, e na semana em que recebem a visita de Donald Trump, que encarna na perfeição o papel de emissário de Mefistófeles, certamente não faltarão pactos faustianos, fazendo jus à peça “Doutor Fausto” de Christopher Marlowe.

Os vários atos desta tragédia britânica (nenhuma outra mais britânica do que esta) continuam a desenrolar-se. Tragédia esta que já se tornou o símbolo da facilidade com que forças anti-progressistas conseguiram subverter a democracia e abalar os alicerces de um país com uma História tão rica quanto o Reino Unido.  Aprisionados numa ficção criada por alguns, a única certeza nesta situação sem precedentes é que as tragédias em palco nunca terminam com um final feliz.