Uma reportagem do “New York Times” (29 de março de 2025) trouxe à luz do dia o envolvimento secreto – e direto – dos EUA na guerra da Ucrânia, confirmando aquilo que temos vindo a dizer ao longo dos últimos três anos, e tantas vezes sonegado e/ou desvalorizado pela comunicação social.

Em abril de 2022, os EUA estabeleceram no quartel-general do Exército americano para a Europa e África, em Wiesbaden (Alemanha), um posto de comando (PC) operacional orientado exclusivamente para o planeamento e direção das ações militares ucranianas, “trazendo a América muito mais próximo da guerra do que se sabia do antecedente,” onde, lado a lado, oficiais americanos e ucranianos planeavam as ações militares de Kiev. Esta parceria, a espinha dorsal das operações militares ucranianas, considerada por Moscovo como violação de uma linha vermelha, esteve na base de sucessivas ameaças veladas de uma possível resposta nuclear russa. Nesta aventura participaram também, entre outros, oficiais britânicos, canadianos e polacos.

A atividade desse PC inclui(u) um enorme esforço de recolha de informações sobre alvos russos, que eram posteriormente passadas aos soldados ucranianos no terreno, funcionando como um centro de fusão de intelligence, produzindo informações detalhadas sobre as posições, movimentos e intenções russas. Inicialmente, a identificação dos alvos reportava-se “apenas” a alvos russos em território ucraniano.

Como adiante veremos, com o andamento da guerra essas regras foram sendo alteradas e aplicadas também a alvos em território russo, e ao emprego de drones marítimos, desta feita com recurso ao apoio da CIA e dos britânicos. A sobrevivência ucraniana no campo de batalha deveu-se não só ao equipamento fornecido pelos EUA, mas, sobretudo, a este tipo de apoio responsável pela morte de vários generais russos no início da guerra.

A desconfiança mútua

Apesar da estreita colaboração entre ucranianos e americanos ser apresentada como uma parceria, a reportagem dá-nos nota de uma permanente desconfiança recíproca. “Rivalidades, ressentimentos, imperativos e agendas diferentes” contribuíram para isso.

Ilustrativo desse sentimento foram as palavras do general Oleksandr Syrsky, então comandante das forças terrestres ucranianas, na primeira vez que se encontrou com americanos, “nós estamos a lutar contra os russos. Vocês não. Porque é que havemos de vos dar ouvidos?”. Para essa desconfiança terá contribuído o facto de os ucranianos “verem, por vezes, os americanos como prepotentes e controladores – o protótipo do americano paternalista. Por outro lado, os americanos não conseguiam compreender porque é que os ucranianos não aceitavam simplesmente os seus bons conselhos.”

Como ponto de partida dessa desconfiança estava a distância entre os objetivos estratégicos de cada uma das partes. “Os ucranianos queriam ganhar a guerra de uma vez por todas. Mesmo partilhando essa esperança, os americanos queriam certificar-se [apenas] de que os ucranianos não a perdiam.” O objetivo estratégico de Washington era derrotar estrategicamente a Rússia, numa versão maximalista a sua implosão, e a mudança de regime em Moscovo (sem nunca entendermos qual seria a alternativa de Washington a Putin, se é que havia) sem uma confrontação militar direta.

Foram vários os desencontros entre os principais atores envolvidos nessa parceria. Por um lado, os ucranianos “estavam sempre zangados com o facto de os americanos não poderem, ou não quererem, dar-lhes todas as armas e o equipamento que desejavam.” Por outro, “os americanos estavam irritados com o que consideravam ser exigências pouco razoáveis dos ucranianos.”

Na opinião destes, os americanos não estavam dispostos a fazer o que era necessário para os ajudar a vencer. Por sua vez, os americanos achavam que os ucranianos não estavam dispostos a fazer o que era imprescindível para serem ajudados a vencer. Como pano de fundo de tudo isto estava a soberba norte-americana. Como disse o General Christopher Cavoli, SACEUR e por acumulação de funções comandante das forças americanas na Europa, afinal os ucranianos “não tinham de ser tão bons como os britânicos e os americanos; tinham apenas de ser melhores do que os russos.”

Num assomo de sinceridade, o comandante desta parceria ucraniana-americana instalada em Wiesbaden, o General Christopher Donahue explicou que os ucranianos lutavam e morriam, testavam o equipamento e as táticas americanas e partilhavam as lições aprendidas. “Sem vocês”, disse ele, “nunca poderíamos ter construído todas estas coisas.”

Um dos primeiros acontecimentos que marcou essa desconfiança foi o afundamento do Moskva, o navio almirante da esquadra russa no Mar Negro, em abril de 2022. Numa reunião rotineira de partilha de informações, entre oficiais da marinha americana e ucraniana, o navio apareceu inesperadamente nos radares. A Administração Biden não tinha intenção de permitir que os ucranianos atacassem um símbolo tão importante do poder russo. Não obstante, com a ajuda dos ingleses, e sem avisarem os seus parceiros americanos, nem os informarem de que possuíam mísseis capazes de atingir o navio, afundaram-no contra a sua vontade.

Outro dos momentos do desconforto instalado, foi a contraofensiva ucraniana no verão de 2023, quando os ucranianos contrariando as instruções dos norte-americanos atacaram simultaneamente em três direções, com os resultados conhecidos, comprometendo assim a possibilidade de um volte-face no conflito, dado o volume de meios destruídos nessa operação. O que mereceu o grito desesperado de Cavoli “não é esse o plano!”. “A estratégia concebida em Wiesbaden foi vítima da política interna fraturante” onde a política se intrometia nas operações militares, e os generais competiam entre si por protagonismo.

No início de 2024, Zelensky deu instruções ao general Valery Zaluzhnyi para empurrar os russos de volta para as fronteiras da Ucrânia de 1991, até ao outono desse ano. O general chocou os americanos quando lhes apresentou um plano que exigia cinco milhões de granadas de obuses e um milhão de drones, ao que o general Christopher Cavoli respondeu, em russo fluente: “E onde é que os vou buscar?”

“À medida que os ucranianos foram ganhando maior autonomia na parceria, foram mantendo as suas intenções cada vez mais secretas.” A incursão ucraniana na região de Kursk, no segundo semestre de 2024, veio agravar esse sentimento de desconfiança. Os ucranianos não só mantiveram novamente os americanos na ignorância da operação, como atravessaram secretamente uma linha mutuamente acordada, levando equipamento fornecido pela coligação, em particular o americano, para território russo.

Mais uma vez, os ingleses não desperdiçaram a oportunidade para mostrar serviço e dar uma facada nos americanos, participando ativamente no planeamento da operação, que não contou com o apoio dos HIMARS e dos serviços secretos dos EUA. O resultado desta imprudente operação, decidida pelo presidente Zelensky contra o parecer de Zaluzhny, subordinada a objetivos políticos, também é conhecido. Os danos em material e pessoal foram imensos, e provavelmente irrecuperáveis.

As dificuldades de relacionamento entre os diferentes atores são conhecidas e estão documentadas. Por exemplo, entre Zaluzhny e o seu homólogo americano, o general Mark A. Milley. Mas alargam-se às lutas intestinas entre as lideranças ucranianas, algo que a propaganda ocidental impediu a divulgação. A reportagem dá conta dos choques entre Zelensky e o seu chefe militar general Zaluzhnyi (e potencial rival eleitoral), e entre este e o general Syrskyi, inconformado por o seu subordinado ter passado a ser seu comandante.

Na sequência do incómodo causado pela irrealizável utopia instalada na cabeça de Zelensky de recuperar todos os territórios sob controlo russo, Zaluzhnyi publicou um longo artigo no “The Economist” (1 de novembro de 2023) em que declarava estar a guerra num impasse, precisando os ucranianos de um avanço tecnológico quântico para a vencer, contradizendo o apelo à vitória total do seu presidente.

As linhas vermelhas

Com o prolongar do conflito e a evidente incapacidade de ucranianos e americanos infligirem uma derrota militar a Moscovo, o envolvimento americano foi progressivamente aumentando, fornecendo aos ucranianos armas cada vez mais sofisticadas, ultrapassando muitas das suas próprias linhas vermelhas e avançando para terrenos cada vez mais perigosos e movediços. Passaram a autorizar operações clandestinas anteriormente proibidas, colocando militares no terreno. Foram enviados conselheiros militares para Kiev, posteriormente autorizados a deslocarem-se para a linha da frente, próximo dos combates.

O mesmo fizeram os britânicos enviando secretamente dezenas de militares para a Ucrânia. Uns com a missão de instruir os soldados ucranianos a operar os sistemas anticarro fornecidos por Londres; outros (maio de 2023), após a transferência dos mísseis cruzeiro Storm Shadow para Kiev, para formar os ucranianos a utilizá-los. À semelhança do NYT, o “The Times” dá nota do papel crucial desempenhado pelos comandantes militares britânicos na Ucrânia.

Como atrás referido, numa fase inicial, os americanos apenas identificavam alvos russos em território ucraniano. Se os ucranianos quisessem atacar dentro da Rússia, teriam de o fazer recorrendo aos seus próprios serviços secretos e a armas produzidas pela Ucrânia. “A nossa mensagem [americanos] para os russos era: Esta guerra deve ser travada dentro da Ucrânia.” Os americanos “apenas” informavam os ucranianos onde é que se encontravam as forças russas em território ucraniano.

Perante a ausência dos resultados desejados, os generais Cavoli e Donahue optaram por subir a parada e pediram autorização para se utilizarem os HIMARS (High Mobility Artillery Rocket Systems), o que proporcionou um enorme salto qualitativo nas capacidades ucranianas. A reportagem do NYT chama à atenção para o facto de um oficial americano, num ato de lucidez, se interrogar “se não estamos [americanos] a dar um passo na direção da Terceira Guerra Mundial?” Transformado no back office da guerra, Wiesbaden supervisionou os ataques com os HIMARS.

Os ucranianos pediram autorização para utilizar as armas fornecidas pelos Estados Unidos para atingir o outro lado da fronteira, leia-se, território russo. O que foi autorizado, desde que os alvos se situassem nas designadas “caixas de operações”, isto é, zonas mais ou menos retangulares com cerca de 190 milhas, previamente selecionadas. Os ucranianos passaram a poder utilizar os seus novos ATACMS fornecidos pelos EUA para atingir alvos no interior da Rússia. “O impensável tinha-se tornado real. Os Estados Unidos estavam agora envolvidos na morte de soldados russos em solo russo,” o que legitimava um ataque russo ao quartel-general das forças americanas na Europa.

Neste perigoso processo de sucessivas alterações das regras do jogo, Wiesbaden desempenhava um papel decisivo, orientando os ataques, como vinha fazendo por toda a Ucrânia e na Crimeia fornecendo os objetivos e as coordenadas dos alvos. Oficiais americanos e britânicos supervisionavam todos os aspetos de cada ataque, desde a determinação das coordenadas até ao cálculo das trajetórias de voo dos mísseis.

Em 2024, a continuação da falta de progresso das forças ucranianas e a necessidade de manter os ucranianos à tona de água “forçou” a Administração Biden a ultrapassar novamente as suas próprias linhas vermelhas. Numa entrevista, já depois de ter abandonado a função de conselheiro de segurança nacional, na Administração Biden, Jake Sullivan disse que não foi por medo da 3ª Guerra Mundial que os ATACMS não foram inicialmente distribuídos à Ucrânia, mas porque não os tinham.

O stock existente era insuficiente para satisfazer as necessidades de dissuasão americana. Esse problema foi posteriormente resolvido pelo aumento da produção. Segundo ele, “à medida que tomávamos decisões sobre o fornecimento de equipamentos, avaliávamos o nível de risco aceitável de modo a evitar uma espiral de escalada”, como se eles próprios, com estas decisões, não estivessem a escalar o conflito.

De acordo com esta evolução e contrariando uma política de longa data, que impedia a CIA de fornecer informações sobre alvos em solo russo, a CIA teve luz verde para apoiar ataques a objetivos específicos dentro da Rússia. A Administração Biden autorizou a CIA a ajudar os ucranianos a desenvolverem, fabricarem e instalarem uma frota de drones marítimos para atacar a frota russa do Mar Negro.

Militares e operacionais da CIA em Wiesbaden planearam e apoiaram a campanha de ataques ucranianos à Crimeia. Em outubro, com margem de manobra para atuar na própria Crimeia, a CIA apoiou secretamente os ataques de drones ao porto de Sebastopol. Para além disso, a Casa Branca autorizou os militares e a CIA a trabalharem secretamente com os ucranianos e os britânicos num projeto para derrubar a ponte de Kerch.

Quem, na verdade, combatia com um braço preso atrás das costas, não eram os ucranianos, como se tornou comum afirmar, mas sim os russos, impossibilitados de atacar o olho da serpente localizada em Wiesbaden, responsável pelos ataques ucranianos e protegida pela NATO. Uma resposta russa a Wiesbaden significaria a guerra mundial. Foi com esta espada de Dâmocles que vivemos durante mais de dois anos.

Entretanto, os comentadores nacionais, imitando o que a propaganda internacional ia propalando, apelidavam irresponsavelmente Putin de frouxo e medroso, por recuar nas linhas vermelhas sucessivamente ultrapassadas, esquecendo que “tantas vezes vai o cântaro à fonte, que um dia lá deixa a asa.” Para eles, indiferentes ao perigo, na sua puerilidade e ignorância apregoavam a necessidade de continuar a pressão sobre a Rússia, sem terem a noção de quão perto se encontravam do abismo.

Estamos em crer que outro dirigente russo talvez não tivesse a paciência estratégica de Putin e não tivesse resistido a tamanhas provocações. Não temos muitas dúvidas sobre qual seria a resposta dos EUA, se os russos decidissem reciprocar o tratamento, colocando misseis “defensivos” em Cuba ou na Venezuela.

Portanto, não podemos deixar de assinalar a ligeireza, a insensatez, a falta de preparação e a imprudência com que a Administração Biden lidou com este assunto. Ainda teremos de perceber o quão perto estivemos da catástrofe, a dimensão da irresponsabilidade das lideranças europeias, e o grau de desonestidade do comentariado nacional.” Andaram mesmo a brincar às guerras mundiais.