Ficámos a saber que há mais uma candidata a Secretário-Geral das Nações Unidas, a búlgara Georgieva, e que conta com o apoio de Merkel. Isto é visto por cá como uma traição ao nosso Guterres, e é também mal visto pela França e pelo Reino Unido, que preferem ver o nosso ex-PM no lugar e querem tudo menos divisões. Até Putin terá acolhido mal essa lobista da senhora Merkel, quando ela o tentou convencer, na cimeira do G20 na China, a apoiar Georgieva. Também o que é que ela havia de esperar de Putin, quando Georgieva é Vice-Presidente de uma Comissão Europeia que impôs sanções à Rússia por ter anexado a Crimeia e por suportar os rebeldes na Ucrânia?
Confesso que acho esta candidatura dos búlgaros um daqueles episódios menores da História, daquelas coisas de que ninguém se orgulha, a começar pelo primeiro-ministro do país, que teve que tirar o tapete a uma candidata sua para pôr outra sem saber porquê. Ainda por cima, não quis dizer que a outra deixou de ser sua candidata, portanto dá apoio a uma sem dizer nada da outra, uma coisa à moda do Marco Paulo, que tinha dois amores. E faz esta “vulgaridade” enganado pela alemã.
Pois é, acredito que a leitura que se faz da posição de Merkel está profundamente errada, e que nós, cá no nosso cantinho, que a vemos como uma facada nas costas do nosso António, estamos a ser injustos. Esta aparição de Merkel como membro da recém-criada lista de lobistas internacionais, para mais a favor duma Georgieva, pode parecer estranha, mas tem perfeita justificação se olharmos para o que se está a passar com a profundidade que a matéria merece. E vou explicá-lo.
Em primeiro lugar, é muito mais o que liga Merkel a Guterres, e seguramente muito mais do que aquilo que os divide. Veja-se que os dois são hoje os expoentes internacionais da política de refugiados: o nosso António, nas Nações Unidas, e Angela, na Alemanha. Aliás, ela tornou-se até na única pessoa na Alemanha (quiçá, a única na Europa) que acredita na política dos refugiados. Tanto acredita que está em vias de se tornar ela própria numa refugiada, pois já nem no seu próprio país a aturam – desde o seu parceiro de coligação, Sigmar Gabriel, até ao líder do ramo da Baviera do seu partido, Seehofer. Acrescente-se que Seehofer, em janeiro deste ano, ameaçou Merkel com uma ação no Tribunal Constitucional se ela não restaurasse o controlo das fronteiras e acabasse com a política de refugiados – na verdade, o que ele pretendia era pôr Merkel, como refugiada, da Alemanha para fora.
Em segundo lugar, Merkel sabe bem que, nos dias de hoje, a melhor maneira de acabar com as hipóteses de um qualquer candidato a uma qualquer eleição, em qualquer parte do mundo, é declarar-lhe o seu apoio. Até na Alemanha ninguém a quer ter ao lado numa campanha, nem que seja para administrador de condomínio.
O nosso engenheiro que esteja, portanto, tranquilo. Esta eleição para Secretário-Geral vai ser um passeio para quem, como ele e para usar a expressão portuguesa, já leva “muitos anos a virar frangos”. A única diferença é, que desta vez, é uma franga.
Nota biográfica: Hemp Lastru (n. 1954, em Praga) é sobrinho neto de Franz Kafka. Democrata convicto, ativista e lutador político, é preso várias vezes pela polícia secreta checoslovaca, tendo sido sentenciado em 1985 ao corte de uma orelha sob a acusação de “escutar às portas”. Abandona a política em 1999, deixando Praga para residir em Espanha. Mudou-se para Portugal em 2005 porque “gostaria de viver num país onde os processos são como descrevia o meu tio-avô nos livros.”