É fácil detectar nas imediações dos centros comerciais e dos seus restaurantes, ou dos grandes edifícios de escritórios, um exército de caras tristes, olhando fixamente para o telemóvel, nas suas motas ou carros com autocolantes TVDE. São a face mais visível da economia do biscate. Uma parte muito significativa deles, provavelmente esmagadora, fazem desta actividade a sua profissão única. Verdadeiros trabalhadores dependentes e subordinados, em tudo menos no nome. Cabisbaixos e explorados, mas trabalhadores essenciais em períodos de confinamento.
Num modelo de negócio em que não usufruem de salário mínimo, de duração máxima da jornada de trabalho, ou protecção na saúde ou social, passavam, pré-pandemia, 30% ou 40% do seu tempo em modo de ‘espera’, em que estão disponíveis, mas não estão a ser remunerados por essa espera e disponibilidade.
Um modelo em que os lucros se acumulam em Silicon Valley, mas os trabalhadores são portugueses ou aqui residentes. Um modelo que enxameia a cidade de veículos em circulação constante, sendo responsáveis por uma fatia imensa de congestionamento e poluição urbana.
Há poucos dias atrás, a Califórnia levou a referendo um conjunto de propostas legislativas, entre as quais a infame Prop 22. Apesar do apoio ao voto de ‘não’ de Joe Biden e Kamala Harris, entre muitos notáveis democratas, um inédito montante de 224 milhões de dólares foi aplicado na campanha do ‘sim’ por parte de empresas de “Transporte Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Electrónica” (TVDE) ou de entrega de comida. Uma grande parte investida em anúncios nas televisões e nas redes sociais, superando os valores investidos na recente campanha presidencial!
Esta Prop 22 vem, na prática, repelir a eficácia da Assembly Bill 5 (AB5) da Califórnia, que impunha que as empresas considerassem os falsos trabalhadores independentes com direitos típicos dos trabalhadores por conta outrem. Salário não inferior ao salário mínimo nacional, acesso ao subsídio de desemprego, a um seguro de acidentes de trabalho, entre outros, são coisas que os falsos independentes terão dificuldade em ter acesso.
Pior do que o poder do big money, a aprovação da Prop 22 vem legitimar um modelo de negócio, baixando os riscos e os custos futuros que estes negócios das plataformas enfrentam. E estabelece um precedente perigoso, rumo a uma maior precarização dos trabalhadores.
Felizmente que em Nova Iorque, e um pouco por toda a Europa, a tendência legislativa parece ir em sentido de proteger estes trabalhadores e atenuar os efeitos perniciosos da desregulamentação.
É muito importante que o Governo e a Assembleia da República concretizem, quanto antes, um dispositivo legal para que a acumulação de lucros não se faça à custa dos trabalhadores residentes e imponha um conjunto mínimo de direitos a estes trabalhadores fragilizados e essenciais.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.