A cultura de cancelamento tem sido assunto entre nós nas últimas semanas, a propósito das declarações controversas de um empresário acerca da proibição do aborto em alguns Estados dos EUA e das polémicas opiniões de um professor da Universidade de Aveiro sobre a comunidade homossexual. Tema há muito debatido na generalidade dos países democráticos, onde o fenómeno há muito se verifica, tendo-se, aliás, agravado nos últimos anos, em Portugal o assunto é relativamente recente.

Como é de tradição, os movimentos políticos, sociais e culturais chegam a este canto ocidental da península com atraso e, por vezes felizmente, como é o caso, em versão suavizada. Porém, mesmo que de forma mitigada, o cancelamento ameaça causar danos, porque é um fenómeno nefasto e, no limite, contrário à liberdade, embora as mais das vezes justificado em nome desta.

O cancelamento pretende eliminar do espaço público todo e qualquer discurso que seja considerado ofensivo ou discriminatório para um determinado grupo. Embora, assim dito, possa parecer um acto legítimo e até louvável, o cancelamento comporta, porém, problemas de monta. Desde logo porque colide com um valor matricial das sociedades livres: a liberdade de expressão, que deve ter a maior amplitude possível, protegendo inclusivamente opiniões tidas por polémicas ou absurdas.

Como é costume dizer-se, o disparate é livre, o que significa precisamente que as opiniões, independentemente do que pensarmos acerca delas, possam ser expressas.

Por outro lado, o cancelamento, ao propor-se limitar um direito fundamental, fá-lo sob bases fluidas, pois os conceitos de ofensa ou de discriminação comportam por vezes uma subjectividade que os tornam argumentativamente insuficientes para justificar a limitação de um direito objectivo, o qual só poderá ser posto em causa por uma entidade competente para o fazer, os tribunais – e apenas nos casos em que haja forte indício de cometimento de crime – e não pela opinião pública ou, como sucede mais frequentemente, pela opinião publicada, que não possui nem o direito legal, nem a competência necessários para definir e limitar direitos.

Assim sendo, à opinião cabe não condicionar um direito, antes exercer um outro: o debate. No espaço público, o combate a ideias consideradas controversas faz-se através da confrontação de argumentos, da discussão e da reflexão. Só estes exercícios permitem o esclarecimento e a persuasão.

Para vencer e convencer a opinião alheia, necessário se torna esgrimir pontos de vista, não impor uns através do silenciamento dos outros. Até porque esse silenciamento, além de contestável, pelo que acima foi dito, revela-se contraproducente, pois o problema não é tanto que as pessoas digam o que pensam, mas pensarem o que dizem e o facto de serem silenciadas não apenas não as faz mudar de ideias, como lhes reforçam as convicções, além de lhes conferir o estatuto de vítimas. Como sói dizer-se, é da discussão que nasce a luz.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.