Ainda me recordo de uma notícia publicada após as revelações de Edward Snowden sobre espionagem e vigilância globalizada, que descrevia como parte dos serviços secretos russos tinham regressado às velhas máquinas de escrever a fim de se protegerem de vulnerabilidades informáticas que permitem que tecnologia sofisticada tenha acesso indevido a aparelhos eletrónicos.

Na altura, achei muito curiosa a ideia de se regressar ao uso do papel para evitar fugas de informação. Hoje, volvida uma década sobre as revelações de Snowden, o seu impacto deu lugar a novos reforços e regulações na matéria. Mas serão estes suficientes?

Claramente não, face à revelação recente do projeto Pegasus, uma investigação jornalística com o apoio da Amnistia Internacional, que tem vindo a gerar uma nova vaga de indignação e preocupação que parece estar a passar ao lado da sociedade civil portuguesa. Mas esta é uma discussão que temos de fazer quando descobrimos (na verdade, confirmamos) que há empresas – mais concretamente o grupo israelita NSO – que estão a vender spyware para aceder aos nossos telemóveis a governos autocráticos ou democracias cada vez mais iliberais para fins ilícitos.

Desde 2016 que existe uma lista de alvos que inclui primeiros-ministros, líderes da oposição, ativistas e jornalistas. Entre eles, figuram 189 jornalistas e 85 ativistas dos direitos humanos, assim como 600 políticos e 85 executivos. A sofisticação de Pegasus, um cavalo de Troia infiltrado nos nossos smartphones, onde conservamos grande parte dos nossos dados, permite a um atacante aceder sem restrições a mensagens, emails, microfones, câmara, chamadas e contactos no aparelho.

Entre os clientes da NSO contam-se países como a Índia, Hungria, Marrocos, Ruanda e Arábia Saudita, mas também cartéis de droga mexicanos que têm recorrido ativamente a este spyware, tal como terá sido comprovado o uso desta tecnologia contra a família de Jamal Khashoggi, assassinado em 2018 por oficiais sauditas ligados à casa Saud.

A dependência generalizada dos smartphones pela população permitiu a criação de uma indústria de vigilância que tem operado a coberto de fachadas legais, e sob o pretexto de se combaterem atividades criminosas e terrorismo têm sido cometidas múltiplas violações de direitos humanos. Desde Snowden, o problema não só não foi suficientemente regulado, como foi intensificado pelo setor privado.

Quanto mais normalizarmos estes comportamentos ou adotarmos uma atitude passiva, mais corremos o risco de ter estas empresas a vender a nossa privacidade a troco de lucro, indiferentes às consequências.

Facilmente consigo imaginar um futuro onde todos aqueles que se queiram dedicar a áreas como política, ativismo ou jornalismo terão de ponderar seriamente em abdicar do uso de determinadas tecnologias se quiserem desenvolver a sua atividade sem colocar a sua vida em risco.

Num mundo globalizado como este já ninguém está seguro. E por mais que goste da ideia de regressar ao papel e às velhas máquinas de escrever, a robustez da nossa democracia vai também depender da sua capacidade em blindar-se à infiltração de cavalos de Troia. Se queremos evitar o destino da cidade de Troia, esta é uma batalha que temos de vencer.