Apesar de estar a invocar os nomes de Aníbal Cavaco Silva, José Sócrates e Ricardo do Espírito Santo Silva Salgado no título desta crónica, este não é um texto, essencialmente, sobre essas personagens. Antes, uma tentativa de abordar problemas do nosso regime, persistentes ao longo de décadas.

As ditas figuras, no entanto, servem bem um propósito iconográfico, pois que todas elas são, cada qual à sua maneira, uma imagem da história político-económica de Portugal. Faltará a esta trindade António de Oliveira Salazar. Mas lá chegaremos.

Todos sabemos que Portugal é um país do sul da Europa, semidesenvolvido, periférico e com uma democracia ainda pouco amadurecida. Apesar de todos os progressos que temos vindo a fazer, Portugal ainda é um país relativamente pouco instruído, muito desigual, com elevados níveis de evasão fiscal e economia paralela, má gestão das organizações privadas e públicas, com pouco capital social e corrupto.

Temos uma longa história enquanto nação independente, mas é inegável o atraso que acumulámos desde que perdemos a hegemonia global do século XV, nos entregámos às mãos dos ingleses aquando das invasões francesas ou tivemos uma inquisição tão forte e uma ditadura tão tardia no século XX. Sim, tudo o que acontece é sempre consequência de uma causa, e a nossa vivência contemporânea surge numa sequência de existências passadas. Quando hoje Sócrates é acusado ou Manuel Pinho é indiciado, convém não esquecer o passado, se quisermos que o nosso futuro possa ser melhor.

Olhando apenas para a nossa vida democrática, destaca-se o seguinte: o domínio perpétuo do centrão (PSD e PS, com alguns apontamentos do CDS), o controlo efectivo de certas organizações e famílias (muitas delas com pergaminhos de poder que remontam à monarquia ou, pelo menos, ao Estado Novo) e a conivência popular, que tanto apoiou, quer no poder local como no central, caciques corruptos.

Quando me refiro ao Cavaquistão, estou, necessariamente, a referir-me ao apoio que Cavaco Silva granjeou entre os portugueses: duas maiorias absolutas enquanto primeiro-ministro, dois mandatos como Presidente da República. Mais de 20 anos de identificação do povo português com uma figura de remanescências autoritárias, austeras e púdicas, uma espécie de alma penada da outra senhora.

Durante todo o reinado cavaquista proliferaram as negociatas e o desbaratar dos dinheiros públicos, nomeadamente dos fundos europeus, perdendo-se a oportunidade de regenerar empresarialmente o país. Dos camaradas de Cavaco Silva, são múltiplas as histórias de promiscuidade entre o público e o privado e as douradas portas-giratórias, as suspeitas de gestão danosa dos dinheiros públicos (nas autarquias, no poder central, nas empresas públicas e na banca) e até casos fascinantes de autarcas condenados por corrupção que são reeleitos.

Nesse rol, até se incluem elementos do CDS, que tiveram responsabilidades governativas e que não ficaram a salvo das suas histórias mal-esclarecidas (que foram submergidas ou fotocopiadas para parte incerta). Mesmo mais recentemente, sob intervenção externa, os herdeiros cavaquistas, no governo de Passos Coelho, seguiram a lógica do desrespeito pelo público em nome dos interesses privados.

Quando passamos para a Socratite, a alusão é intuitiva. Principalmente durante a maioria absoluta de Sócrates, o país viveu um tempo de prosperidade enganosa, baseada no crédito barato e, à semelhança de Cavaco, nas obras públicas com pouco potencial reprodutivo e com contratos lesivos para o Estado (as vergonhosas PPP, as privatizações baratas ou a gestão danosa de empresas estatais).

Depois, com a crise de 2008, começou a perceber-se de forma mais evidente que as entregas sucessivas de soberania à União Europeia tinham lados negros. Começa a austeridade, a demonização dos funcionários públicos e, finalmente, a chegada da Troika.

Durante todos estes tempos, aqueles que sempre tiveram o poder, e que só o perderam momentaneamente numa época em que se abrigaram no Brasil, discretamente reassumiram o controlo da máquina. Dando benesses aos governantes centristas, o “Espírito Santo” rapidamente readquiriu as suas capacidades de omnipresença fantasmagórica que detinha desde os tempos da monarquia e, especialmente, durante o Estado Novo.

Portugal é um país marcado pela influência da Igreja Católica, pelos grupos maçónicos que derrubaram a monarquia e pelos poderes económicos que marcam cada época. A nossa democracia é ainda muito controlada por essas forças, seja pelas crenças e valores das pessoas, seja pelas teias de poder que as ditas forças constroem.

Para produzirmos um futuro melhor, precisamos de romper com muitos desses enredos instalados. Precisamos de fugir das maiorias absolutas e aprender a disciplina do compromisso. Precisamos de novos actores políticos e de novos partidos. Precisamos de mais movimentos da sociedade civil e de uma maior pluralidade nos que podem dar e fazer opinião. Precisamos de mais e novos empreendedores não comprometidos com os poderes antigos nem com os empresários do costume. Enfim, precisamos de mais e diferentes forças de poder, para que o exercício do mesmo seja mais escrutinado e o seu abuso dificultado.

São essas as reformas estruturais de que Portugal e a sua democracia verdadeiramente precisam para podermos fazer a tão almejada convergência com os países mais desenvolvidos do mundo.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.