A vida corria bem a Mário Centeno. Por ser um ministro fraco de um país fraco, facilmente levado pela lisonja e manipulações pouco subtis a ceder à vontade de outros, foi escolhido para presidir ao Eurogrupo. O cargo pode ser vagamente irrelevante e não servir para mais do que fazer do seu ocupante o testa-de-ferro das decisões políticas dos países que contam na União Europeia, mas deu a Centeno o tipo de destaque oco que no nosso país se tende a confundir com “prestígio”.
Mas como num qualquer mito antigo grego em que a húbris dos homens os faz cair tão depressa quanto subiram, os dias felizes de Centeno acabaram quando se soube que o ministro das Finanças estaria a ser alvo de um inquérito do Ministério Público, por ter solicitado ao Benfica bilhetes para assistir a um jogo do clube na tribuna presidencial do Estádio da Luz, ao que se juntava uma suspeita sobre uma possível intervenção de Centeno na atribuição de uma isenção de IMI ao filho do presidente da agremiação de que o ministro das Finanças aparentemente é adepto.
Para sorte de Centeno, as atribulações não duraram muito: na passada quinta-feira, o inquérito foi arquivado. Embora o Governo tenha suspirado de alívio, o resto do país deveria ter continuado preocupado, e muito. Pois mesmo não tendo havido qualquer crime, com ou sem “ajudinha” ao filho de Vieira, o simples facto de um ministro das Finanças andar a pedir favores a uma empresa (os clubes são empresas por muito que os vejamos de forma diferente, e empresas que geram e movimentam muito dinheiro) com quem o Estado tem de lidar é um exemplo – como as viagens dos secretários de Estado ao Europeu de 2016 oferecidas pela GALP o haviam sido antes – do insalubre ambiente promíscuo em que a “elite” portuguesa vive e convive.
Quando foi anunciado o inquérito a Centeno, o primeiro-ministro veio a público declarar que “em circunstância alguma” poderia o ministro demitir-se do seu cargo devido a esta questão, que considerou da “dimensão do ridículo”. Embora pouco ajuizada, a afirmação de Costa é natural nele, como o seria em qualquer político português. Para o líder do Governo, como para quase todos os seus pares – Manuela Ferreira Leite, por exemplo, acha que “não há um único português que não tenha pedido um bilhete para ir ver a bola” – não há nada de errado no comportamento de Centeno.
Todos os dias, deputados, secretários de Estado, ministros e primeiros-ministros almoçam e jantam com altas figuras de importantes empresas, falam ao telefone com eles, frequentam os mesmos sítios, têm amigos e família em comum, vão a “eventos” organizados uns pelos outros; fazem viagens pagas pelos clubes e Federação de Futebol para se promoverem em troca de se dar ao jogo da bola o “mundo à parte” legal em que o desporto vive; os partidos a que esses políticos pertencem são financiados pelas empresas geridas pelos seus comensais; recebem favores de uns e fazem favores aos outros, conversam amigavelmente uns com os outros de forma informal sobre decisões a serem tomadas formalmente mais tarde. Tudo sem escrutínio ou transparência.
Por muito triste que seja, o país “funciona”, se é que se a palavra se aplica, através do coçar de costas entre o “poder político” e o “poder económico” (incluindo o “poder futebolístico”) e, portanto, seria de esperar que António Costa considere da “dimensão do ridículo” questionar a continuidade de um ministro por causa do que, para ele como para os partidos da oposição (veja-se a declaração de Paulo Rangel considerando que a polémica em torno de Centeno não passava de uma tempestade num copo de água), é apenas normal e quotidiano.
Claro que, se a posição do ministro se tivesse tornado intolerável, Marcelo, sempre preocupado com o seu culto de personalidade, teria forçado Costa a demiti-lo, e o primeiro-ministro recorreria à sua célebre falta de vergonha (que os fãs designam por “habilidade”), fazendo então o contrário do que anteriormente tinha dito. O que teria sido suficiente, como o arquivamento do inquérito o foi, para acalmar a “opinião pública”, que, tão depressa como se escandalizou com o caso, logo se esqueceu de que, para além do destino do ministro, há um problema sistémico e estrutural, cuja gravidade não desaparece mesmo uma vez esclarecido que Centeno não terá cometido nenhuma ilegalidade neste caso.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.