Recordo-me bem da primeira vez que vi pessoalmente Mário Soares. Personalidade familiar pelas suas frequentes aparições na televisão, somente em 1991 tive a oportunidade de ver a sua imponente presença, no Coliseu dos Recreios, num concerto de Pavarotti. Viviam-se as vésperas das eleições presidenciais e Soares candidatava-se a um segundo mandato. Fiquei impressionado com a forma como foi recebido. Aplaudido por uns, foi sonoramente vaiado por outros. O momento era propenso a alguma tensão, mas os apupos pareceram-me inapropriados e, sobretudo, injustos. Não era difícil perceber, pela composição da plateia, que os que o vaiavam eram simpatizantes da franja mais à direita da sociedade portuguesa, que sempre detestou, e continua a detestar, Mário Soares.
Reflectindo, anos mais tarde, sobre o episódio, reforcei a convicção quanto à injustiça dessa animosidade. Soares foi responsabilizado por essa direita pela desastrosa descolonização. Porém, há que recordar as circunstâncias em que o processo decorreu. Desde logo, a sua inevitabilidade, que o Estado Novo sempre recusou, teimando em manter Portugal como potência colonial quando as demais potências haviam já descolonizado.
Assim, a descolonização acabou por ser feita no pior momento possível, quando a autoridade do Estado se dividia numa multiplicidade de instituições, formais e informais, que competiam entre si pelo poder e a contestação política e social, que tomara de assalto a rua, comprometia a estabilidade política. Por outro lado, a importância que a questão africana tinha para os militares – não esqueçamos que foi o principal motivo do golpe de 25 de Abril – e as insanáveis divergências no seio das Forças Armadas quanto ao modelo a adoptar, condicionavam a autonomia de decisão dos políticos, alvo de constantes ingerências.
Esta direita desvalorizou também o papel determinante de Mário Soares no combate às ambições do PCP e dos militares a este afectos. Num período em que o CDS era um partido acossado e quase clandestino, sobretudo após o cerco ao Palácio de Cristal e o PPD, enfraquecido por divergências internas e pela ausência de Sá Carneiro, se mostravam diminuídos para o combate, foi Soares quem, corajosamente, protagonizou esta luta vital para o futuro do país.
Desvalorizou também a importância que Soares deu à relação com os EUA, mantendo o alinhamento atlântico definido, recorde-se, pelo Estado Novo e o seu empenhamento na adesão de Portugal à comunidade europeia, destino tão inevitável quanto acertado para uma nação novamente confinada ao território europeu e que afastava definitivamente o país dos aventureirismos esquerdistas.
Esqueceu, ou fez por esquecer, que foi Mário Soares quem contribuiu para a correcção de decisões danosas para a economia nacional, tomadas no decurso do processo revolucionário. A reversão progressiva da Reforma Agrária ou a abertura da banca ao sector privado foram iniciativas de governos por si chefiados.
Agora que estamos no tempo da História e já não da contenda política, será justo que os que ainda nutrem por Mário Soares um ódio irracional, como são todos os ódios, lhe façam a justiça que em vida lhe não fizeram.
O autor escreve segundo a antiga ortografia.