A pergunta parece descabida, mas o facto é que todos nós nascemos dotados de uma máquina cerebral que tem 86 mil milhões de neurónios, muitos mais que o normal programa de inteligência artificial que conseguimos construir e, no entanto, não conseguimos confiar na normal aquisição de conhecimento que a simples exposição aos factos nos daria. Deveria bastar colocar o ser humano em contacto com o máximo de factos possível.

É certo que não seria a mesma coisa que coletar todos os textos de todos os sites da internet, mas seria o suficiente para vivermos normalmente a vida. Ou não?

Não. E a razão tem alguma profundidade matemática e física. Imaginemos que tínhamos 16 bolas e precisávamos de aprender a sua movimentação numa mesa de bilhar pool com 2,5 metros quadrados. Cada bola tem 0.002 metros quadrados de área, o que significa 1228 sítios para cada bola se imobilizar, em que cada um pode ser ocupado por uma das 16 bolas ou estar vazio, isto é, 16 serão ocupados e 1212 ficarão vazios.

Sem entrar pelo problema estatístico, podemos ver que o número de estados possíveis deste sistema é gigantesco (o seu Excel não aguenta…). No entanto, não é preciso ser um génio para olhar para uma mesa de pool e entender a posição das bolas.

De forma a compreendermos o funcionamento da nossa máquina, vamos começar a “colar” as bolas com um pau. Cada bola que se cole a outra passa a movimentar-se de forma solidária; para onde vai uma, vai a outra. Não é complicado perceber que o número de estados possíveis se reduz em muito com cada colagem, porque as bolas deixam de ser independentes entre si ou, como dizemos em Mecânica, os graus de liberdade são reduzidos.

Ou seja, quanto mais “colarmos” as bolas, menos estados possíveis temos e mais fácil é meter o número no Excel.  Então, mas no nosso problema inicial podemos “colar” as bolas? Fisicamente, não. Mas virtualmente, sim. É isso que a nossa máquina de neurónios faz, “cola” as bolas, não com cola mesmo, mas juntando coisas que as bolas têm em comum (ex.: a posição vertical, a posição horizontal, a distância entre elas…), montando uma rede virtual. Esta rede não existe, de facto, na mesa, embora exista na representação que o nosso cérebro faz da mesma.

Se tudo na vida fosse uma mesa de bilhar não precisávamos de ir à escola. Bastava olharmos para a mesa ou para várias mesas para “treinarmos” a rede virtual que temos no nosso cérebro.

Vamos agora deixar as mesas de bilhar e passemos para esta imagem 2D que estão a ver neste momento. Esta imagem tem vários objetos diferentes projetados de forma unidimensional, isto é, uns atrás dos outros, a que chamamos de “palavras”. Se não tivessem passado uns quantos anos na escola, seria impossível entenderem que raio são estes riscos que este sujeito se pôs a desenhar na tela que estão a ver agora.

Este estranho sistema, a que chamamos “texto” e é composto de palavras, tem uma particularidade. Todos os seus componentes, ao contrário das bolas da mesa, estão colados. Uma palavra está sempre ligada às outras. Se eu tirar uma, o texto deixa de fazer sentido. Se eu quiser saber o significado dessa palavra vou ao dicionário e trago mais palavras na volta. Uma palavra isolada não serve para nada! Usando a analogia, as bolas desta mesa já estão fisicamente ligadas.

Ora, sabendo que as palavras estão fisicamente ligadas, o que é que a nossa máquina de neurónios vai fazer? O mesmo que faz com as bolas da mesa de pool. Vai interligá-las virtualmente de forma que consiga tirar graus de liberdade. O problema é que, no caso das palavras, elas estão interligadas fisicamente. Ou seja, o resultado de passar a máquina de neurónios pelo texto vai ter um resultado horrível, sendo necessária uma nova solução.

Que solução é essa? A solução é não aprender a ligar as palavras por aquilo que têm de comum, mas aprender as ligações que já existem entre elas. Entre os caracteres, as palavras, as frases, os parágrafos, etc. É isso que vamos à escola fazer, aprender as ligações entre as “bolas”, não as “bolas” em si. E levamos anos a fazê-lo porque não é natural, as ligações físicas das palavras não se veem. Temos de treinar o nosso cérebro para aprender esse novo objeto: a ligação.

Aquilo que estão a ver nesta tela é uma projeção unidimensional de uma rede bastante complexa onde as palavras se ligam umas às outras. Nós vamos à escola aprender a tirar deste espaço unidimensional as ligações para representarmos no nosso cérebro a rede e para, depois, voltarmos a projetar essa rede para que alguém possa ler.

Isto a propósito do ChatGPT, a nova maravilha da inteligência artificial que tanta excitação e medo tem gerado. O ChatGPT é uma forma algo sofisticada de aprender ligações entre palavras. Há já quase uma década que sabemos como o fazer, aquilo que traz de novo é a quantidade de texto que foi usado para o treinar e a conjugação de escalas (das palavras às frases, das frases aos parágrafos, dos parágrafos ao texto…) que consegue tirar.

Em nada substitui tarefas verdadeiramente inteligentes. Para desgosto de alguns que achavam que aquilo que faziam era sinal de inteligência, o que o ChatGPT faz é montar textos coerentes com base naquilo que já leu, de acordo com a rede interna que construiu e que liga as várias formas de texto. Na junção entre factos e texto é muito limitado (por exemplo, é capaz de dizer com um texto muito bem sustentado que a melhor forma de transporte entre duas cidades é o comboio, embora nenhuma delas seja servida por uma linha). E, muito menos, é capaz de usar lógica.

Por isso, para quem me lê, se acha que o seu emprego está em perigo por causa de uma máquina destas, é porque aquilo que faz não é muito inteligente. Se pensa substituir as suas ferramentas digitais habituais, como pesquisas na internet, vai ter uma vida tramada. Se entender o que está aqui em causa, será muito mais divertido porque se este computador aprendeu a ler e a escrever, está ainda longe de perceber o que lê e o que escreve. No fundo, ainda só atingiu o nível daquele chato que não se cala nas reuniões.