O futebol em Portugal é a expressão do que melhor fazemos: vitória no campeonato europeu, presença regular ao mais alto nível do desporto na Europa e no mundo, atletas que brilham nas ligas mais competitivas do desporto, treinadores que fazem escola no mundo inteiro.
É a única atividade em que o país está no pelotão da frente, apenas o turismo se lhe compara e há bem menos tempo. Infelizmente, o futebol é também sinónimo dos piores sintomas da nossa sociedade: criminalidade violenta, muito provavelmente organizada, veículo e objeto de corrupção, manipulação do aparelho judiciário, crime de colarinho branco, adulteração de resultados desportivos, racismo e por aí fora.
O futebol é, sociologicamente, o albergue de todos os sentimentos extremos e inconfessáveis que qualquer sociedade alberga no seu seio – e a nossa não é exceção. O ato racista gritado da bancada é menos grave que quando é praticado na cara. Muitos foram os que disseram que Marega foi “provocar” a bancada da claque do Guimarães o que, a seu ver, justificou e desagravou os impropérios proferidos.
Quando os juízes deitaram fora as provas angariadas por Rui Pinto e o mandaram prender, para a horda de incondicionais do clube da Luz fez-se justiça. Quando, há uns anos, as gravações dos telefonemas de Pinto da Costa, que ainda sobrevivem no YouTube, deram em nada e tanto ele como o seu clube escaparam à mais que óbvia e justificada condenação, os seus adeptos viram nisso prova do “poder” do clube e do seu presidente.
Quando, uma e outra vez, os jogos veem o apito final aguardar até que o resultado convenha, os adeptos do vencedor regozijam-se enquanto os do perdedor vituperam os dirigentes por não conseguirem o mesmo. Quando as transações milionárias de jogadores caem sob a alçada do fisco, as matérias arrastam-se e, de uma forma geral, os agentes são apanhados mas os agenciados desculpados.
Quando um político em falta de palco precisa de arregimentar seguidores, alberga-se numa qualquer estação de TV onde verte o seu sectarismo para que se lhe veja a “força”, a “lealdade” e a “autenticidade”. Foi isso que fez André Ventura. Este palco que o futebol lhe proporciona é o grande facilitador dos extremismos fáceis e a força propulsora de fenómenos marginais que ele assim consegue fazer passar, paulatinamente, para a primeira linha do debate político.
Soubemos nestas últimas semanas que o Chega conta já com mais intenções de voto que o CDS, quase 6% a nível nacional. Soubemos também que André Ventura sairia à frente de Ana Gomes numa eventual candidatura à Presidência da República. Tudo isto quando veio mais uma vez à ribalta acusar todos de hipocrisia no caso de Marega – porque não falam eles dos enfermeiros agredidos e dos polícias desprotegidos? – indagou. Não importa que eles realmente falem e tratem disso. Não importa sequer que o nível de violência sobre a polícia em Portugal seja dos mais baixos do mundo.
O que interessa é fazer apelo ao primitivismo que nos leva a apenas dar crédito aos argumentos que confirmam as nossas convicções e não à realidade em si. É este “viés de confirmação” que está na base da subversão da verdade. Não somos racistas (somos), o nosso clube merece ganhar (nem sempre), os nossos são sempre honestos (às vezes, não). O futebol é o melhor que temos (é). Mas também o pior. E podemos contar com o Chega para o fazer pior ainda pois com essa alavanca levará muitos a crer que o país está sem remédio e que apenas o seu tóxico elixir o poderá curar.