Não podemos dizer que não fomos avisados. Bolsonaro é um veterano da política brasileira, eleito como deputado federal desde 1990 (graças a e) apesar do seu radicalismo. Sem dúvida uma parte da população apoia a ditadura e a tortura; defende o conservadorismo homofóbico e machista; e partilha do racismo e elitismo, com desprezo pelos negros pobres e por agendas de igualdade.
Bolsonaro é hoje entretenimento. O aprofundamento da política-espectáculo fortaleceu o terreno do fenómeno. Quem grita mais e com mais graça, tem mais tempo de antena. Não interessa se fala a verdade. As respostas pronto-a-vestir para problemas complexos, com tom autoritário e fascista, foram naturalizadas pela exposição sistemática. Um amigo brasileiro residente em Portugal riu com tolerância de um vídeo com frases inacreditáveis e chamou-lhe maluco. Só instado a defender o conteúdo reflectiu sobre o que seria ter o maluco como presidente.
Anos de corrupção, o aumento da insegurança e a frustração da classe média com a crise e a degradação de serviços públicos e de condições de vida tornou o Brasil presa fácil da demagogia fascista. O PT centrou-se em panaceias, enquanto geriu o regime e a sua corrupção e gangrenou com ele. Uma resposta simples, ainda que perigosa, parece preferível a um regime político desacreditado para muitos brasileiros.
Mas Bolsonaro é também um guilty pleasure. Mandar tudo para o ar, gritar basta e encontrar culpados da situação (que não os próprios) é libertador: os corruptos, os traficantes, os pobres (que são uns mandriões), o norte (pobre) vs. o sul (rico). E acima de tudo, a esquerda, o PT.
Ele é também a reacção nostálgica à emergência de novos grupos sociais e à reclamação do ajuste numa sociedade dividida pela herança colonial e esclavagista entre pobres e ricos, entre negros e brancos. Isso colide com a visão dourada de um passado bom e ordeiro, que na verdade só foi bom para quem já tinha uma posição social superior. Quem quer ouvir que a sua vantagem resulta de privilégios históricos injustos e não do mérito próprio?
E depois, a religião. As igrejas evangélicas cresceram em influência e procuraram um candidato para pôr no poder uma agenda de retrocesso social. Em 40 anos, passaram de 6% para 30% dos brasileiros; elegeram deputados; entraram nas classes médias. Fizeram da TV Record e das sessões de culto espaços de combate político e de infiltração da religião no debate público. Quando a crise bateu forte no país, estas igrejas estavam no terreno, a missionar e a mobilizar simpatias e apoiantes.
Para um político da propaganda anti-aborto, homofóbica e conservadora, o casamento com uma força religiosa com forte mobilização é vantajoso. Bolsonaro apela ao apoio dos evangélicos desde o impeachment de Dilma. Agora usa o slogan de campanha ‘Brasil acima de tudo, Deus acima de todos’ e repete loas à família tradicional. Finalmente, Edir Macedo da IURD declarou-lhe apoio em directo na TV Record. Pouco importa que Bolsonaro vá na terceira mulher…
É por tudo isto que me parece muito dificil impedir a sua vitória eleitoral. Ele beneficiou da vitimização e da publicidade da facada e poupou-se ao desgaste da campanha. Parte com a legitimidade da urna e acumula o apoio das elites económicas, dos militares e do aparelho judicial. O vírus do ódio e da divisão interna não sairão já da sociedade brasileira. Mesmo que Haddad vença, pode ser posto em causa, tal como aconteceu a Dilma.
É certo que três semanas de campanha podem criar desfechos imprevisíveis. Basta recordar as presidenciais de 1986, em que um Soares com 25% derrotaria um Freitas do Amaral apoiado pela direita e tido como ameaça ao regime saído de Abril, através da convergência do restante espectro polítco na segunda volta.
Recentemente, Portugal esteve perto de novo cenário de polarização, com contornos bem menos explosivos. E foi a recusa de amarrar um partido a um ex-líder indiciado pela justiça; a convergência de forças políticas em redor da defesa da Constituição e a construção de um programa de resolução dos problemas mais urgentes que abriram caminho à saída da crise nacional e a uma acalmia na sociedade portuguesa.
Ora, nenhuma destas condições ocorre (ainda) no Brasil. O PT centrou-se na polarização e manteve-se à sombra de Lula. No incitamento ao ódio mútuo, o candidato sem lastro no poder sai sempre a ganhar: se Bolsonaro parece envolvido em corrupção, é Lula quem de facto está preso. Na verdade, o ódio ao PT agrega hoje os mais diversos campos políticos brasileiros.
A primeira tarefa de Haddad é, por isso, consolidar o campo democrático ao redor da sua candidatura. Para isso, precisa de se tornar um candidato autónomo com campanha própria, centrada em temas que afectam os brasileiros. Bolsonaro evitará o confronto de ideias, refugiando-se em temas morais e em vacuidades: pouco interessa aos seus eleitores que ele seja o candidato mais impreparado de sempre.
Mas para Haddad isto é fundamental. Mais do que apelar ao medo e ao ódio ao oponente, será na base de um frentismo democrático negociado com os outros partidos; no diálogo com sectores religiosos moderados; na mobilização dos movimentos sociais em torno da reforma do Estado e da sociedade; e na atracção de muitos indecisos e abstencionistas que se poderá criar uma resistência.
Nas eleições recentes da França e dos Estados Unidos, largos sectores políticos recusaram essa convergência democrática – por não verem concessões políticas relevantes; por verem o receio de um golpe fascista como parte de uma chantagem política; para evitar a associação que esse apoio implica. O risco de uma repetição do caso no Brasil é enorme. Mas o sistema político brasileiro não tem os mesmos mecanismos de freios e contrapesos que se encontram na América, nem o espartilho de uma UE.
A vitória de Bolsonaro causará ondas de choque profundas dentro e fora do Brasil. Não só pelo que o próprio poderá fazer, mas pelo que outros se sentirão autorizados a passar a fazer. Parece que chegou a hora do tudo ou nada.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.