No entanto, as mesmas características que o tornam fácil de utilizar e circular vivem de mão dada com a facilidade que qualquer pessoa mal-intencionada (nesta opinião, o “Chico-Esperto”) tem em subvertê-las, desde que conheça minimamente as regras aplicáveis.
Ora, antes ainda de concretizar os problemas, a questão que gostaria de levantar é a da saber se actualmente o sentido e a utilidade do cheque se mantêm. Na minha opinião, como provavelmente se antecipa, a resposta é negativa, essencialmente porque impressiona a forma como o uso (indevido) de cheques ocupa os Tribunais, levando-me a crer que mais valia acabar com a própria figura do que tentar remediar.
Passando, então, aos problemas.
Desde logo, “o obsoletismo da legislação internacional aplicável” (datada de 1931 e apenas suavemente complementada por legislação interna), da qual consta o regime geral de funcionamento do cheque. Neste caso, claramente as (más) práticas ultrapassaram a teoria, que clama por soluções, e actualmente a facilidade com que se tira proveito de um cheque indevidamente é assustadora.
Ora, na prática, regra geral, basta que um “Chico-Esperto” se apodere de um cheque, simule o nome – ou a firma – do beneficiário no verso (a qual não vai, em princípio, ser confirmada quando apresentar o cheque a pagamento) e fazer-se passar, ao balcão (ou depositando-o em ATM), pela pessoa a quem o cheque foi “endossado”. E isto para não mencionar falsificações mais simples (como a mera adulteração do nome do próprio beneficiário) que, não raras vezes, acabam por não ser detectadas.
O que sucede a seguir é que se gerou – no universo, por assim dizer – um “prejuízo” muito difícil de eliminar. Algumas vezes, se a falsificação for grosseira a um ponto em que deveria ter sido detectada pelo banco que o pagou ou que aceitou o seu depósito, o cliente que o emitiu é reembolsado pelo seu banco, passando, assim, o prejuízo a ser suportado por este último. Outras vezes, se a falsificação foi bem realizada, nem isso.
Quando o valor justifica o trabalho, faz-se queixa-crime e se se conseguir encontrar alguém com fortes indícios de ser responsável pela falsificação ou pela utilização consciente do cheque falsificado – o que não é garantido –, os factos acabam por ser apreciados pelo Tribunal.
Estará por lá o emitente (se não foi reembolsado), o banco (se reembolsou), às vezes ambos, muitas vezes multiplicados pelo número de cheques falsificados, sem prejuízo de outros potenciais lesados. E passam-se meses ou anos em Tribunal, a ouvir testemunhas que, frequentemente, já se lembram de pouco e a analisar originais ou cópias dos cheques (porque os originais, que seriam essenciais na produção de prova, são destruídos passados meses, muitas vezes antes de o inquérito ser concluído) para determinar quem vai, a final, suportar os prejuízos, sendo que o “Chico-Esperto”, mesmo quando é condenado, muitas vezes não tem condições de pagar o que quer que seja.
“Por outro lado, o desconhecimento sobre o funcionamento do sistema também não ajuda”: a generalidade das pessoas acredita que, caso haja algum problema com um cheque, o seu banco suportará sozinho o prejuízo e reembolsará o seu valor. Convém ter presente que não é essa a realidade e que os deveres de verificação da genuinidade dos cheques só responsabilizam os bancos quando as falsificações sejam grosseiras e não devam passar despercebidas.
Acredito que é por isto que são deixados cheques preenchidos em locais facilmente acessíveis a terceiros, que são entregues cheques em branco a pessoas em quem, simplesmente, se confia, e que grande parte das pessoas não controla extractos e, por isso, as falsificações são detectadas demasiado tarde.
Em suma, a experiência faz-me acreditar que o uso do cheque está ultrapassado e ainda não conheci nenhum argumento que me convencesse de que há uma quantidade razoável de situações em que o cheque, como meio de pagamento, tem mais vantagens do que qualquer outra alternativa. Pelo menos não em quantidade suficiente para justificar os riscos.
Afinal de contas, hoje em dia é possível fazerem-se pagamentos e transferências bancárias por várias vias, nomeadamente por multibanco e nos portais bancários “online”, que são práticos e estão acessíveis, inclusivamente, nos “smart phones” e outros “gadgets”. Essas transferências geram comprovativos facilmente materializáveis e, em geral, são concretizadas com relativa rapidez. Faltará, porventura, maior informação e divulgação para que cada vez mais clientes recorram a essas soluções.
E se é verdade que alguns tipos de cheque – os “não à ordem”, por exemplo – previnem satisfatoriamente o que descrevi, também é verdade que esses, não só não são, em princípio, o padrão, como não apresentam as características que fazem do cheque (em teoria) um meio de pagamento e de circulação de crédito cuja existência se justifique.
O fim da utilização dos cheques seria, pelo menos, o fim desses e de outros problemas que lhes estão associados. Não creio que daí viesse algum mal ao Mundo e alternativas viáveis e mais seguras não faltam. Vozes públicas têm mencionado essa possibilidade mas, aparentemente, o desaparecimento dos cheques não é medida que esteja já formal e definitivamente decidida. Seja como for, caso se confirme, acredito que já vamos tarde.
Até lá, esperemos que esta opinião sirva, pelo menos, para alertar os mais incautos utilizadores de cheques e minimizar danos. Feliz ou infelizmente, pelo menos não creio que os agrave, pois os “Chicos-Espertos” não precisam de a ler para aprenderem seja o que for.
Por Fábio de Jesus Loureiro
Advogado na FCB Sociedade de Advogados